MATA-BORRÃO
Ignorâncias cruzadas
Falava ao telefone com uma criança que, pela voz, parecia andar nos 30. Pergunto-lhe o que fazer para recuperar a password. Utilizo o verbo, a medo. Será recuperar? Também posso dizer que a antiga expirou, é o que ouço aos entendidos, a esse conjunto imenso de pessoas que sabem o que não sei. No entanto, expirar deveria usar-se em relação ao destino que o Novo Acordo deu a letras e a hífens e a acentos. E prefiro senha a password, mas sinto-me chegada das cavernas, ainda antes da fundição do metal. Este receio miudinho e acabrunhante lembrou-me uma história de uma amiga, essa sim, verdadeiro símbolo da info-exclusão, a quem disseram para pôr um documento numa pen, coisa que lhe pôs os olhos a sair das pálpebras, a que propósito um pénis com documentação.
Depois
de ter explicado (mal) o que tinha acontecido à dita, o meu interlocutor,
prontificou-se a substituí-la. Posso ditar? Faz favor. Eu, o lápis, o papel,
atenção redobrada, quase trémula. Asia1515dolar. Experimentei. Amuado, o ecrã
despreza-me e não reage. Conseguiu? Penso duas vezes. Não devo responder nada
sobre amuos, não devo mostrar-me nervosa. Respiro fundo, não dá nada. Ouço-me e
recrimino-me, não dá nada é mesmo a pedi-las, parvinha, esta. Pacientemente,
pede-me para repetir. Repito, olhando para o papel com o Santo Graal. Mas
colocou asia com letra maiúscula? Sim, o primeiro A. Outra tonteira, o primeiro
A, devia ter dito o A inicial. Então tente novamente. O tente novamente não é
novo nestes percursos informáticos. Um corridinho algarvio, tente novamente e
novamente volte a tentar. Assim fiz. Então, Asia 15 15 d-o-l-a-r. Dólar? Olho
para a minha cábula. Sim, não me disse dólar? Mas escreveu dólar? Nesta fase,
sinto a voz, do outro lado, em anel cravejadinho de topázios impacientes. É o
símbolo. Mas qual símbolo? Já não penso antes de falar, perdido por dez,
perdido por cem. O símbolo do dólar. Já semi-inconsciente, digo-lhe que não
tenho esse símbolo no meu teclado. Como se o meu teclado fosse a minha caneta,
o meu colar, a minha escova de dentes, una e intransmissível, diferente. Todos
os teclados têm esse símbolo. Não, não gritou, é verdade, mas que ficou
alterado, ficou. Recaída da minha parte, não, o meu não tem. Estou em roda
livre e cheia de saudades das borrachas, do papel de sebenta, dos tinteiros,
das réguas, da cola peligon, materiais amigos, fiéis, do coração. Veja lá em
cima do 4. Olhei para o 4 e, de facto, havia o símbolo do cifrão. Fiquei quase
vitoriosa. Isso é um cifrão. Um quê? Um cifrão. O que é um cifrão?
Assim
se cruzaram ignorâncias, a de um jovem adulto com a de uma idosa que acabou o
telefonema extenuada. Creio que ele também.
Maria João Forte é Socióloga
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