Gatos, caixinhas e ideias


Eu às vezes quero guardar tudo na minha cabeça. Ela é tão pesada. “Opero transfusões de luz nos seres opacos”, escreveu Jorge de Lima, e eu leio opaca, opaca. Minha memória fica voltando sem querer a algumas ceninhas que vivi, anos atrás, e a sensação que tenho é de que em algum momento vou entendê-las. Opero transfusões de luz para dentro de mim mesma, mas a luz é minha. As cenas que ilumino em mim são insignificantes e não precisam ser entendidas, como não preciso entender uma mosca que pousa nesta tela. Ela não diz nada sobre este texto, nada que valeria a pena tentar entender.
Aos oito anos de idade eu fui em segredo ao banheiro com uma faca de manteiga na mão, assassinei o sabonete, e todo mundo me achou exagerada e riu. Esta é uma cena para onde eu gosto de voltar. Aliás, lembro que, nessa mesma época eu fechava os olhos e me esforçava para voltar para um lugar que existia dentro da minha cabeça — era um lugar que eu imaginava, porque ainda não tinha lugares na memória para visitar. Fechava os olhos e me via sozinha, entrando num território novo cujas portas eu conhecia porque tinha aprendido sobre elas nos livros. A porta de um armário que dava para uma floresta coberta de neve; ou a porta para um quartinho embaixo da escada onde vivia um menino tão triste quanto eu gostaria de ser. Elas abriam a minha imaginação. E eu entrava a fundo, descia dentro delas. Alguém me falou que, quando era criança, sentia que poderia desmaiar de tanto pensar. Era perigoso pensar sem ter descoberto as rédeas do cérebro, dava para puxar qualquer pontinha de ideia e ir desenrolando o fio que leva ao infinito.
Gosto muito de caixinhas, e tenho lido sobre a arte renascentista de fazer caixinhas que se desdobram em outras menores e menores, cheias de gavetas minúsculas e ornamentação. Devia ser muito bom poder tê-las por perto, e olhar para elas em vez de ter que olhar para a própria cabeça. O gesto me parece quase igual. Mas olhar para as caixinhas deixa a mente mais organizada. Colocar minha mente para olhar para si mesma faz ela ficar confusa. Minha gata dá saltos olímpicos pela sala. Um poeminha irlandês muito antigo, escrito por um monge anônimo, compara o trabalho da mente ao trabalho de um gato que tenta caçar um rato. Ou que brinca de tentar caçar um rato, o que talvez seja mais parecido com o trabalho que eu faço dentro da minha cabeça. Brinco de enfiar minhas patas no buraco da parede, porque sei que lá dentro vive um ratinho, e esse ratinho vê minha pata enorme invadindo sua sala de estar. O ratinho morde minha pata porque é mais esperto do que eu, e minhas ideias me provocam e saem correndo de mim, mais rápido do que eu posso agarrá-las.



Ilustração de Deborah Salles.



Sofia Nestrovski nasceu em São Paulo, em 1991. Cresceu no meio do milharal dos Estados Unidos, voltou para São Paulo mais tarde. Faz mestrado sobre o poeta William Wordsworth na Universidade de São Paulo, dá cursos sobre Shakespeare, assina uma seção semanal sobre palavras no jornal Nexo, escreve resenhas para a revista Quatro cinco um. Também luta Kung Fu, mas não muito.


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