Estou
triste, então faço coisas. Depois perco elas pelo
caminho. Cartolinas e tesouras e almoços para mim mesma, formigas afogadas no pote de mel e o meu
reflexo estranho no espelho. Minha casa tem sempre muita coisa acumulada, e
desse jeito é
diferente de quando estou contente. Quando estou contente, gosto de jogar
coisas fora (é o
que explica como acabei com uma sala tão desprovida de móveis).
Quando a felicidade passa, quando fico triste, me pego dando voltas no vazio,
procurando onde foram parar as coisas que eu tinha.
Deve
ser mais ou menos essa a história
de como os humanos perderam o rabo. Estavam muito contentes, então resolveram jogar fora, e agora
estamos todos tristes e não
sabemos onde foi parar aquilo que nem lembramos que um dia tivemos, e que nos
faz falta. Deve ter sido assim, ou se não foi, alguém
deveria escrever um livro sobre como foi assim. Quanto eu era criança, gostava de um livro ilustrado que
dizia que os elefantes tinham ficado com a tromba comprida porque um jacaré irritou-se com um deles e decidiu lhe
dar um puxão
para ver se melhorava. Não
sei dizer se melhorou. Elefantes são seres simpáticos,
mas esta é a minha visão, não a
dos jacarés.
Gostaria
de escrever um livro que fosse sobre livros, porque um livro sobre livros seria
um livro sobre as minhas memórias.
Por exemplo: tenho gravada no meu cérebro a imagem do pátio do meu colégio
vazio, de um dos muitos dias em que inventei uma desculpa para não ter que ir na aula de Educação Física, porque preferia ficar sozinha dando voltas em busca do meu
próprio rabo. Toda vez que me vem essa
imagem, do pátio
visto de cima abaixo, como se eu estivesse voando por cima dele, me vem
sobreposta à
cena a visão de
um pátio que li nas Mil e uma noites.
Talvez esse pátio
nem exista no livro, mas acho que uma cena se colou à outra no meu cérebro
porque passei os anos de escola buscando um lugar para me refugiar, e as Mil
e uma noites me ofereceram esse lugar.
Eu
confundo minha vida com os livros. Eu confundo minhas experiências com as palavras que tenho para
dar conta delas. Ontem, estava andando à noite com minha irmã e ela, para falar sobre a vida, me disse que é preciso “morrer tentando”. Eu nunca
tinha ouvido ela dizendo isso antes, então perguntei se ela se lembrava ainda do momento em que frases prontas
e expressões começaram a fazer sentido para ela. Houve um dia em que elas não faziam. Acho que nós todos tivemos que viver muito para
chegar até aqui, até este momento em que é possível
dizer que é
preciso morrer tentando. Tivemos que viver muito para chegarmos até aqui, e não foi fácil.
Não é fácil
entrar numa língua,
e talvez eu esteja numa posição
privilegiada para falar sobre isso. Passei a maior parte da minha infância nos Estados Unidos, e falei tanto
inglês que quase cheguei a derrapar para fora
do português.
Quando voltei a morar no Brasil, fiquei algum tempo repetindo a expressão “de grão em grão, a
galinha enche o papo”. Minha irmã ria muito. Eu acho que repetia essa frase porque não sabia o que ela queria dizer, e também porque gostava de poder convocar
casualmente as galinhas à
cena, sem ter que, de fato, estar falando sobre galinhas. É divertido fazer isso. Estou quase
sempre rindo dentro de mim mesma quando falo, o que faz as pessoas me olharem
estranho. Mas mais estranho é
esse território
onde pisamos, este onde é
possível, por exemplo, “morrer na praia”,
sem ter que avisar de antemão
que vamos convocar, para esta cena casual, o mar.
Este
ano, voltei para os Estados Unidos pela segunda vez desde que tinha morado lá. Voltei a falar inglês no dia a dia, coisa que eu não fazia desde os meus dez anos de
idade. Quando eu tinha dez anos de idade eu gostava muito de livros e queria
virar adulta o mais rápido
possível, para poder ser a pessoa mais
triste do mundo, e também a
mais honrável. Para poder ser uma pessoa que
dizia coisas de adulto, uma pessoa para quem as galinhas aceitam encher o papo.
Nessa última viagem, voltei a falar um inglês que eu já não
falava há tanto tempo, e fiquei orgulhosa a cada
vez que consegui infiltrar uma frase pronta na minha fala, e dizer, sem que
ninguém desconfiasse da minha dupla consciência, que Now is as good a time as any,
ou que Your guess is as good as mine. E penso ainda em como teria sido bom se
eu tivesse dito para alguém
que No pain, no gain. Eu adoraria.
Mas
tem um problema nisso de querer entrar numa frase pronta: o problema é que as pessoas que te veem — as
pessoas que só têm como te ver pelo lado de fora —, elas
não sabem que é isso o que você está fazendo, se dividindo de si mesma para
mergulhar numa frase pronta. Talvez elas não consigam ver sua divisão porque elas mesmas se sintam um pouco deixadas de fora pela língua, e gostariam de um dia tentar a
sorte no mundo das galinhas casuais e, enquanto esse dia não vem, ficam um pouco fascinadas com o
uso que você faz
delas. Do lado de fora, você e
suas galinhas parecem tão à vontade juntas.
No
entanto, o problema realmente maior de entrar numa frase pronta é que, ao fazer isso, você de repente se torna uma pessoa que, de
fato, pensa coisas como No pain, no gain, e não só uma
pessoa que gostava de como os barulhinhos rimavam quando tudo o que vinha do
mundo ainda era alheio e instigante. As palavras nos enredam, e chamam suas
amigas também.
Quando vemos, estamos falando também o que vem como consequência de um No pain, no gain, inclusive coisas que não rimam, e aí, quando vemos, já é tarde demais. Ficamos presos à língua e suas ideias fixas.
Nessas
duas semanas que eu passei falando inglês, fiz um esforço
para entrar na superfície
da língua; língua que já não é mais a minha. E não me
dei conta de que, ao fazer isso, estava fazendo crescer uma bolha dentro de
mim, uma grande bolha de ar por trás de toda a minha fala. Com essa bolha inchando dentro de mim, a
sensação que tenho é de que todas as minhas palavras ciscam, incham, e morrem na
praia, sem nenhum sentindo. Sinto que estou o tempo todo mentindo.
Mas
quero escrever neste texto sobre uma coisa especial que me aconteceu no meio da
viagem, quero tentar chegar lá.
Dessas duas semanas que passei nos Estados Unidos, uma eu passei acampada no
deserto, dividindo uma barraca com outras duas meninas na hora de dormir. Elas
eram da Andaluzia, falavam pouco inglês e tentaram me ensinar a falar espanhol como elas. Eu nunca tinha
falado espanhol antes. Então
ficava repetindo tudo o que elas diziam, imitando o jeito delas de falar. Eu
ficava decorando as expressões
mais idiomáticas
para devolvê-las
a elas quando elas não
esperavam, e ver se conseguia fazê-las rir. E elas entendiam o que eu estava fazendo, e riam. É um pouco sobre isso que eu estou
tentando escrever. Elas riam do meu jeito de falar, porque sabiam que aquele
evidentemente não
era o meu jeito de falar. É
isso. É assim que eu me sinto quase sempre. Eu
não sei, eu ainda não sei qual é meu jeito de falar, e já fiquei adulta nesta língua. Não
sei se tenho mais alguma desculpa para trazer minhas galinhas à cena ou, pelo menos, alguma que
justifique eu usá-las,
para além de eu gostar de pensar em galinhas
enquanto falo.
Teve
uma noite, no deserto, em que eu estava dormindo ao lado dessas novas amigas da
Andaluzia, e sonhei que caminhava pelo ar. É sobre isso, é
sobre este momento que eu queria escrever. No meu sonho, eu caminhava sobre as
dunas de areia (eu, sozinha à
noite, sobrevoando as dunas de um deserto: nova cena de uma noite árabe que tenho para recordar). Sonhei
que enquanto pairava no ar, conseguia ver, logo abaixo dos meus pés, a barraca onde dormíamos. E ainda dentro do meu sonho,
sabia que, se me aproximasse, veria os sonhos particulares que nós três sonhávamos.
Era como se eles se comunicassem. Nossos três sonhos se enredavam uns nos outros. Eu fiquei ali suspensa,
sonhando. A lua cheia sobre mim, e eu sonhando que me via sonhar. E a consciência agora que me vem: a consciência de entender o que eu estava vendo:
que era dentro dos sonhos alheios, os sonhos que acontecem em qualquer língua, e que conversam com os meus, que
eu estava aprendendo a falar.
Imagem de Deborah Salles
Sofia Nestrovski nasceu em São Paulo, em 1991. Cresceu no meio do milharal dos Estados Unidos, voltou para São Paulo mais tarde. Faz mestrado sobre o poeta William Wordsworth na Universidade de São Paulo, dá cursos sobre Shakespeare, assina uma seção semanal sobre palavras no jornal Nexo, escreve resenhas para a revista Quatro cinco um. Também luta Kung Fu, mas não muito.
Sofia, que espetáculo de texto! Adorei! Tão simbólico e cheio de fantasia com realidade, que quero ler para o Heitor, 6 anos. bjs
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