Eles gostam é de burgas e fatiados





Eles gostam é de burgas e fatiados

Longe. Muito, muito longe vai o tempo dos pastores. As choças, onde dormiam, os bardos que construíam. O soro, deitado na malga dos cães, privilégio de mulheres paridas e crianças débeis, que requeijão não era hábito fazer-se.
Esses cães imensos, com nome de serra, doces com o homem, bravos com os lobos, pacientes com as ovelhas.

O manto de poalha, antes de assentar nos caminhos, deixado no tropel de centenas de patas, corpos lãzudos e gregários a anunciar a manhã, a dar conta do fim do dia.
Baliam mais depois da tosquia, quase por favor não olhem para nós, nesta figura.
Bota-se-lhe o coalho. Os frescos hão-de ser alvos e nervosos, ainda a tremer no prato. Outros morrerão velhos, curados em tábuas de pinho cobertas de palha, esfregados com sal. Hoje de um lado, amanhã do outro, os meses a passar até a casca ser grossa e a pasta enrijecer. Alguns a lascar na faca, dentes bons para os trincar.
Chegada a Páscoa, a meia-cura molengona e áspera doida pelo pão-de-ló.

Hoje, as francelas e os cinchos jazem nos restaurantes a atirar à pastorícia, ao típico, aos alhos a às cebolas pendentes de arados, ancinhos, foices e lenços minhotos.

Os queijos estão embrulhados em papéis com rótulos sugestivos, desenhos de ovelhinhas, cabrinhas, pastorinhos de cajado, portõezinhos de quintinhas senhoriaizinhas, chocalhinhos dim don din, letrinhas antracite em fundo pérola, sépias, tantas sepiazinhas.

Do lado de lá da bancada luzidia, limpa com detergentes poderosos, cumprindo regras de higiene, a mulher que os vende tem um ar urbano, despachado, habituada à clientela de passagem. E assim conversámos:

- Qual será o menos mau?
- Ó minha senhora, aqui são todos bons.
- Sabe, eu não sou de Lisboa.
- Hum...
- Sei como eles se faziam.
- Eu também. Assim, nem sei que lhe diga.
- Os de cabra sabem a ovelha, os de ovelha sabem aos de cabra e nenhum sabe a nada.
- Está a ver estes? Parecem velhos, não é? Olhe, quando há muita procura, lá nas câmaras onde os metem carregam num botão para ser mais rápido. É um instante.
- E há muita procura?
-  Os turistas levam-nos todos. Sabem lá eles o que é bom. E esta gente mais nova, sabe, os jovens, querem é burgas e fatiado. Vende-se muito, o fatiado, queijinho fatiado. Nunca provei e burgas também não.


 Maria João Forte é socióloga

Comments

  1. Muito Aquilino Ribeiro.
    Gostei do entrançar do português arcaico, num enredo que merecia mais desenvolvimento.

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