Estou pronta para ir ao shopping
Estou pronta para ir ao shopping comprar corda para pular corda.
É domingo, daqui a pouco minha mãe chega para visitar. Disse a ela que quando
chegasse, a gente poderia pular corda juntas até escurecer. Ontem, num sonho,
vi o meu quarto, mas com a cama virada na direção contrária à que ela sempre
esteve. Então antes da minha mãe chegar, pretendo também virar minha cama de
direção. Pretendo fazer uma bagunça imensa. Colocar o colchão em pé na sala,
empurrar os criados-mudos para o corredor, jogar as roupas de cama em cima do
gato para ele se assustar. Estou dividindo as horas do dia com atenção, para
que minha mãe toque a campainha bem no meio da bagunça. Vai ser como na minha
infância, quando eu e minha irmã prendíamos os lençóis uns nos outros e
trazíamos as cadeiras da sala para sustentá-los. A gente se escondia embaixo
deles e brincava de levitar.
A vida de todo mundo é uma coisa secreta. Já conheci uma pessoa
que guardou um pacote de batatas no fundo da geladeira por quase um ano, só para
vê-las brotar. As batatas foram ganhando uns cabelos loucos, enormes, formando
uma rede. Pouco tempo depois, fez o mesmo com cebolas.
Descobri um livro americano, escrito em 1933, chamado “We think
a point has been missed”. É difícil traduzir esse título. Ele é tão gentil:
fala no plural, “we think”, “nós pensamos”, “nós achamos”, e depois na voz
passiva, isto é, ele não acusa ninguém, “a point has been missed”, “algo passou
batido”, “algo escapou”. É um livro técnico, preocupado com uma questão da qualidade
do som na transmissão por rádio de um discurso do presidente Roosevelt. Mas eu
queria que muitos livros tivessem um título assim, um livro meu, inclusive.
A vida é secreta, há tanto que passa batido, batatas dormem
juntas na geladeira e se estimulam a crescer.
Um dia, quero morrer quando estiver no
limite do cansaço. De tão exausta, quero aos poucos ir parando de comer, para
não ter mais energia. Quando chegar no limite da fome, vou desmaiar. Ficarei
algum tempo desmaiada, e então, quando eu acordar do desmaio, vou olhar em
volta, e onde quer que eu esteja, vou cochilar. Quando estiver no limite final
do sono, quando tiver esgotado todo ele, vou passar sem esforço para o sonho
estranho, do outro lado de lá. Consigo me ver agora: enredada pelos cabelos das
batatas, abraçando-as de volta. Um dia minhas memórias vão se apagar, uma por
uma. Minha infância, meus domingos, o jeito que minha cama ficava no meu
quarto, a memória de tudo isso vai se apagar. Meu gato fugindo dos lençóis,
minha mãe e as cordas que pulamos, os dias, os dias, os dias. Agora mesmo, eles
já vão deixando de existir. Uma batata entre outras, vou me sentir gelada,
talvez, mas não vou sentir muito mais. Meus cabelos começam a crescer. Eu
abraço-as de volta, estou pronta para ficar.
Sofia Nestrovski nasceu em São Paulo, em 1991. Cresceu no meio do milharal dos Estados Unidos, voltou para São Paulo mais tarde. Faz mestrado sobre o poeta William Wordsworth na Universidade de São Paulo, dá cursos sobre Shakespeare, assina uma seção semanal sobre palavras no jornal Nexo, escreve resenhas para a revista Quatro cinco um. Também luta Kung Fu, mas não muito.
Eu não entenderia que tipo de imagem é. Parece um esboço. Eu ainda pensei bem que eu me virei para os profissionais: https://www.logaster.com.br/ E isso é só uma corda))
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