Mata-Borrão



Embarcadiço



Limpo e polido, seco e brilhante, o prato ainda rodopiava entre a mão e o pano da loiça. Maria Angélica aproveitava esta tarefa para pensar na sua vida, já longa.
A dimensão do comboio que a havia de trazer para Lisboa, carregada de cestos e de ai Jesus. Ele a prometer-lhe passeios e uma boa casa, fazes o quê aqui, onde só há pedras e estevas, ovelhas e broa?
E agora, faço o quê, aqui? Enfiada numa marquise do tamanho da casa que é do tamanho da marquise, os filhos espalhados por esses caminhos, ele outra vez e sempre no barco, nos contentores, nos cachos de bananas e na cana de açúcar que lhe trazia da Madeira. Agora não lhe traz nada, nem a ele traz. Isso, por acaso ainda bem, que já não podia com estás a ver, quem era aquele, quero o jantar às oito, vou ali ao café, tu é que tens a culpa, havia de ser hoje, malvada a hora, com tantas mulheres e logo tu.
Nunca soube muito bem o que era ser embarcadiço. Sapateiro, barbeiro, cavador, tendeiro, padre, cesteiro, isso sim. Lembrava-se deles todos. Lembrava-se também do frasco que lhe deixava aquele cheiro no cabelo. Espalhava a pasta e com o pente fazia um risco e uma popa, uma popa oleosa e brilhante, sem a qual não saía de casa. Gingava a escadas que ela esfregava com sabão amarelo, deslizava o sapato na ponta do cigarro e assobiava uma moda.
O prato a luzir e a cabeça no carrossel. Um dia levou-a a uma feira. Sentou-se na girafa, a rir-se do medo dela que se enroscava no cavalinho azul. Vou vomitar. E vomitou e teve tanta vergonha das manchas na camisa de Domingo e vomitou mais quando ele lhe perguntou se ela conhecia o rapaz dos bilhetes. És uma puta.
Quem a dera com a mãe, mesmo sem colo e sem caldo. Antes dela, seis, depois dela, outros tantos. Mas tinha nome, ó Maria Angélica olha o menino, ó Maria Angélica olha o gado, ó Maria Angélica vai à doutrina, à fonte, à monda, à ceifa. Depois perdeu-o. Perder o nome é uma má sina. Ele chamava-a com os olhos e as mãos, dedo esticado a apontar-lhe as calças mal vincadas, olhos brutos se o vinho faltava na garrafa.
Foi uma vizinha que espalhou a notícia. Morreu a mulher do embarcadiço. Tiveram que arrombar a porta. Parece que estava a limpar a loiça. Bem bonito, o pano. Todo debruadinho a crochet.



Maria João Forte é Socióloga












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