Mata-borrão






Ecas

Como todas as palavras interditas, era possível verbalizá-las desde que tivessem a moldura da anedota. Lembro-me de me rir muito com aquela da senhora que vai à loja e pergunta, tem ecas? Ecas? Sim, ecas. Cu já eu tenho.
Isso não tem graça nenhuma, diria a minha mãe.
Creio que já se diz pouco, cuecas. Slip, boxer, calcinha ou biquini altas, tanga, fio dental, cintura descaída, licra, algodão, arrendadas, sem costura, redutoras, sunga, asa-delta, hipsters, samba-calção, long-leg, shorties. Dá outro tom às lojas da especialidade.
Uma tia-avó, senhora severa e professora primária numa aldeia, contava que um ano, na sala de aula da primeira (hoje, 1º. grau), um rapazito começa a rir de forma incontrolável. Admoestado, ó menino, que é isso? O pequeno ria ainda mais. Passado algum tempo, o aluno acabou por justificar o destempero. Ó minha senhora, eu andava à précura do meu pé, précurei, précurei e encontrei-o debaixo do mê cu. O gáudio com que isto era contado, punha um brilhozinho nos olhos da já então velha senhora. Dizia a palavra, pondo-a na boca de outro. E, sobretudo, eu também me podia rir sem ouvir reprimenda.
A primeira vez que ouvi dava o cu e cinco tostões, pensei qual seria o significado daquilo, tendo sido infrutíferos os meus esforços. Uma palmada? Paga por quem a leva? Longe, que longe estava de conhecimentos outros, bem mais elaborados.
Muito deselegante, diria a minha mãe.
Quem tem cu tem medo, parecia-me uma charada ou um silogismo. Se toda a gente o tem, toda a gente tem medo? Vulgaríssimo, diria a minha mãe.
O que é que o cu tem a ver com as calças.
O que é que uma coisa tem a ver com a outra, diria a minha mãe.
Pois. Muitíssimo mais interessante a primeira e igualmente indecifrável.
Nos recreios, a cantilena maravilhosa de no mato grosso andava tudo nu, uma pena de pavão na mão, uma pena de pavão no.
Parvoíce completa, diria a minha mãe.
No secretismo de infância, era possível, a partir da palavra proscrita, falarmos na linguagem dos cús. A professora, de cu para baixo, dava a lição, de cu para cima. Falava de cu para baixo e ralhava de cu para cima. Risos escondidos na concha da mão. Burburinho entre as heroínas da liberdade.
Nas aulas de francês, a palavra pescoço, quando traduzida, provocava baixar de olhos e trejeitos, para desespero da professora. Já cá fora, alvoroçadas e dentro da bata branca, repetíamos pescoço, pescoço, pescoço.
- A mãe sabe como é que se diz pescoço em francês?
- E então? Como correram as aulas?
Gostar de andar de cu tremido. Ouvi, pela primeira vez, em relação a alguém que podendo ir a pé, preferia a carreira. Nos rurais, sinal de armar-se ao fino. Voltava a rir. Não só era cu, como também tremido. Muito cómico, achava eu.
Muito feio, diria a minha mãe.
Nascer com o cu virado para a lua era mesmo secreto. Sim, os bebés andavam dentro das mães. Quem os lá punha não se percebia bem, mas assim, daquela forma, virados para a lua. Bizarro.
Pessoas com sorte, diria a minha mãe.
Mas, se calhar a melhor delas todas, o insulto, cara de cu. Enjoadinhos das carochas, diria a minha mãe.
Já cara de peidola é impossível corrigir. Face de pum?


Maria João Forte é Socióloga 

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