Invisível
1
Era uma vez duas irmãs. De
repente era só uma, a mais nova. Ela se chamava Sofia, mas se vocês preferirem,
pode ter outro nome, algum que seja bom de falar. Papoula, por exemplo. Papoula
é ótimo de falar. Mas eu resolvi chamá-la de Sofia, e ficaremos bem desde que
vocês saibam que esta é uma decisão minha e vocês não precisam aceitar minhas
decisões. Eu só queria que vocês não confundissem a Sofia comigo. É uma
complicação que eu criei aqui, e eu gostaria de evitar as complicações, se
possível. Mas se coloquem no meu lugar por um instante: meu nome não é Sofia,
não para mim, pelo menos, porque quando eu paro e olho e tento agarrá-lo dentro
da minha cabeça, ele imediatamente se transforma em Aifos. Aifos Iksvortsen.
Como acontece com todas as minhas ideias.
Um dia, muito tempo atrás e muito
longe daqui, a Sofia que não sou eu era criança e morava numa casa que ficava
na frente de uma grande árvore. A Sofia era exigente, e sabemos disso porque
ela lia muito, a ponto de não ser amiga de nenhuma outra criança, nem de
ninguém. Então ela vivia sempre sozinha, conversando com as próprias ideias e
olhando para o chão. A coisa que ela mais gostava de fazer era fugir de casa.
Um dia descobriu que algumas partes na base do tronco da grande árvore do
quintal já pareciam isopor — tinham virado uma madeira fofa e desagradável,
como as maçãs mais tristes do mundo. Foi nesse isopor que a Sofia conseguiu
cavar um vão grande o bastante para entrar e ficar, ficar no coração do tronco.
Cabia ela e mais ninguém. A árvore continuava viva. Os animais achavam que ela
era a árvore, as plantas talvez achassem também (não tenho certeza) e era muito
bom. Que surpreendente que é ficar dentro de uma árvore viva. Ela te cobre mas
você não encosta nela, nem quando abre os braços, nem quando planta bananeira.
Dentro da árvore. Vocês já entraram num útero? Então. Agora a coisa preferida
da Sofia era fugir de casa e ficar escondida na árvore.
A Sofia também achava que fugir
de casa era muito bom, porque você arruma uma mochila e nunca mais volta e é
tudo culpa dos outros. Nessa mochila tem: uma boneca de plástico de feições
redondas, mostarda, e todos os segredos que importam. Por exemplo: o segredo
dos gigantes. O segredo é que são gigantes que deixam as marcas de sapato no
cimento das calçadas. Só eles são pesados o bastante para marcar o cimento, mas
têm pés pequenininhos, do tamanho dos nossos, então saem à noite, quando todos
estão dormindo, para não passarem vergonha. Por isso que ninguém nunca viu os
gigantes, eles têm vergonha dos pés. Outro segredo: a Sofia é tão bonita por
dentro quanto por fora. É difícil encontrar outra pessoa que seja assim. Na
maioria dos casos, as outras pessoas são um saco.
Quando a Sofiazinha se escondeu
dentro da árvore pela primeira vez, ninguém sabia onde ela tinha ido parar, e
todos ficaram desesperados, inclusive sua mãe, apesar de ela ter feito sua
sequência completa de tai chi naquela manhã e tai chi é a única coisa que
impede as mães de ficarem desesperadas! Vocês não imaginam como seriam as mães
sem tai chi! Aquele dia foi ótimo, a Sofia conversou com as minhocas.
No dia seguinte, a Sofia tinha
mais alguns segredos acumulados para guardar na sua mochila, mas esses nem eu
sei quais são. A verdade é que ela tinha que ir cedo para a escola, então os
segredos ficam para depois, eles nem pertencem aqui porque segredos são sempre
interessantes e escola é sempre um téééédio. Mas não era tédio que ela dizia,
porque naquela época ela falava outra língua, uma que fazia tédio soar muito
mais redondo, como deve, porque o tédio é um planeta. Era lá que a Sofia era
obrigada a passar a maior parte dos seus dias.
Ficava horas sem saber o que fazer com os próprios braços — se os
amarrava à frente, ou deixava pendurados ao lado do corpo, ou se valeria a pena
dobrar os cotovelos. E depois que se resolvesse a questão dos braços, o que
fazer com a quantidade de tempo que tinha nas mãos? Nos momentos em que a Sofia
saía do tédio e vinha para a terra comum, só conseguia falar com muito vibrato,
para que todos ao redor soubessem que ela estava sofrendo.
[to be continued em um mês,
aqui.]
Sofia Nestrovski nasceu em São Paulo, em 1991. Cresceu no meio do milharal dos Estados Unidos, voltou para São Paulo mais tarde. Faz mestrado sobre o poeta William Wordsworth na Universidade de São Paulo, dá cursos sobre Shakespeare, assina uma seção semanal sobre palavras no jornal Nexo, escreve resenhas para a revista Quatro cinco um. Também luta Kung Fu, mas não muito.
Sofia Nestrovski nasceu em São Paulo, em 1991. Cresceu no meio do milharal dos Estados Unidos, voltou para São Paulo mais tarde. Faz mestrado sobre o poeta William Wordsworth na Universidade de São Paulo, dá cursos sobre Shakespeare, assina uma seção semanal sobre palavras no jornal Nexo, escreve resenhas para a revista Quatro cinco um. Também luta Kung Fu, mas não muito.
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