Aborrecimento, quase poesia
XV: As conversas
“Que fazem as
conversas?”.
“Meandram.
As conversas meandram de sombrinha em punho. Fazem footing.”
“Que
operações são postas em marcha?”
“Paranças,
vaguear à procura de banco vago, debruçar-se a parapeitos...”.
“Encantar-se”.
“As
conversas focinham. Focinham, desordenadas, atrás de uma Arquipalavra”.
“Aquela
que a silenciará, aquela que colocará fim”.
“As
conversas, as pessoas. Tudo pede ser silenciado.”
“É
isto que corre por debaixo das conversas?”
“Penso
que sim”.
“Mas
as pessoas são os cafés, os terraços. São onde se conversa”.
“Também
eu. Há muito que penso nos sonhos como habitações, como espaços físicos. Às
vezes, é como se eu pudesse tocar no papel de parede”.
“Os
raminhos traçam as veias e as artérias”.
“Os
raminhos são os nervos”.
“Antes
das conversas, não estaremos em silêncio?”
“Não
é bem o silêncio. É um inacabamento qualquer. Um estado de insaciedade”.
“Que
relação se pode estabelecer entre esta insaciedade e o escambo de signos e
significantes a que se nomeia diálogo?”
“Come again?”.
“O
que são amenidades?”
“Não
sei. Há tempos não tenho conversas amenas”.
“Nos
elevadores?”
“Não
tenho o costume de apanhá-los cheios”.
“Gostaria
de ter mais conversas amenas?”
“Sim,
mas por que admiti-lo em público? Seria como uma capitulação. Seria como
confessar publicamente desejos de ligeireza. Não quero ser visto como um homem
frívolo e barato”.
“Repita
alto e bom som”.
“Alto
e bom som”.
“As
conversas não encontram alguma coisa”.
“É
uma ótima definição”.
“As
conversas não encontram alguma coisa”.
“Perdem
uma carteira, um broche, um documento importante”.
“Uma
chave”.
“A
aldeia inteira”.
“Como
é difícil decompor um diálogo, não? Parece-me quase impossível isolar seus
elementos constitutivos”.
“Com
efeito, parece mais fácil compô-los do que decompô-los. Tão fácil que tem um ar
de trapaça”.
“Certas
pessoas parecem mesmo fadadas a construir, a não parar jamais”.
“Isto
me escandaliza”.
“O bom das
conversas é ver como preenchem”.
“Não
é? Se ao menos isto fosse a vida. Uma maneira de ganhar o pão”.
“Você
estaria disposto a algo parecido? A conversar indefinidamente, a falar, a falar
sem cessação, só para manter sobre a cabeça um teto; sobre o pescoço, uma
cabeça?”
“Por
que não? Há precedentes. Além do mais, sinto que não me sairia mal entre os
frequentadores do Algonquin”.
“Então
é uma arte?”
“Sim”.
“Mas
é uma arte servil?”
“É
uma arte de corte, sem dúvida”.
“Tenho
a impressão de que aqui só se conversa sobre duas coisas. Finanças e saúde.
Sempre com alarme. As pessoas precisam pagar boletos. As pessoas precisam fazer
exames. Sempre essa toada. Quando não é isto, fala-se da saúde dos outros, das
finanças dos outros”.
“Com
alarme?”
“Com
alarme e prazer”.
“Bom,
isto já foi dito. As conversas perdem a carteira. São onde se perdem as
carteiras. Os exames. Os papéis importantes”.
“A
saúde. Idílios praianos. Estâncias de veraneio. Horas descomplicadas de amor”.
“Bom, resta sempre
a possibilidade da mentira, da invenção”.
“Idealmente, sim”.
“Não me compreenda
mal. Não gosto que me mintam.”
“Eu tampouco”.
“Tomo tudo ao pé da letra. Dizem-me as coisas
mais delirantes. Não apuro. Não questiono. Recebo notícias de fraudes sem grande
surpresa. Parece-me, por assim dizer, parte da coisa toda”.
“Boa solução. Assim
caminha-se pela vida sem tantos esbarrões”.
Ismar Tirelli Neto é poeta, ficcionista, roteirista e tradutor. Nasceu em 1985, no Rio de Janeiro. Vive e trabalha atualmente em Curitiba. Lançou os seguintes livros: synchronoscopio, Ramerrão e Os Ilhados.
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