Tuiuiú

Já vivi mais de um quarto dos meus cem anos de vida. De novo um verão que começa frio, de novo duas noites sem dormir a cada sete. E eu arrumo a casa, eu limpo a casa, visto minhas meias de seda e levo o lixo para fora: copos e copos de vidro com luz dentro deles, almofadas, âmbar, tapetes aquecidos no Sol. 
Os dias importantes fogem de mim e me deixam aqui com estes, gelatina quente. Sento sozinha no chão da sala, com os pés na sacada, fumando as bitucas de cigarro que as visitas deixaram. Eu nem ao menos sou fumante, mas gosto de poder parecer uma pessoa bem triste. Visto roupas enormes que prometi guardar, e passo calor dentro delas. Sempre tantas roupas por dobrar – uma vez li que na Inglaterra do século 18, uma mulher gastava 42 dias inteiros por ano lavando, secando e remendando roupas, mil e oito horas no total. As estrelas, os céus, a terra, os elementos, plantas, repolhos, animais, insetos, bezerros, louça por lavar. Sempre tanto trabalho.
Meu aniversário foi há menos de um mês, gostaria de ter ganhado um animal de grande porte. Um que me impedisse de sair de casa, que me fizesse perder tudo o que pode haver de importante em qualquer dia que seja, tudo o que acontece no mundo. Ficaríamos aqui dentro, eu e meu animal gigante, compartilhando calor.
***
Levanto e vou ao mercado buscar coisas para o almoço, já tarde. Quando saio do caixa, vejo que começou a chover. Eu também já tive um guarda-chuva um dia, mas isso faz tempo, e além disso, tanto faz. Saio andando com as sacolas numa mão, e com a outra abro o pacote de bolachas de água e sal. Vou por um caminho mais longo porque é menos desolador tomar chuva em ruazinhas do que numa avenida. Comendo bolacha de água e sal, bolacha de chuva. Escuto o vendedor de laranjas no megafone repetindo “laranja é natural”.

Ontem fui com minha amiga Milena e seu porquinho da índia no veterinário. No caminho, ela me contou de quando era criança e ia cuidar da horta com os irmãos. Que ela virava um pé de alface. Ficava parada, de cócoras, esperando, e alguém tinha que vir regá-la. Pouco tempo depois, todos aceitaram que ela era um cachorro, e comia no chão, deitada sobre as quatro patas, o rosto dentro do prato. No final de semana ouvi seu irmão dizendo – mas não era comigo que ele falava – que o homem ainda não entendeu seu lugar na natureza. Estava de costas para ele e fiquei satisfeita, continuei regando.


Sofia Nestrovski nasceu em São Paulo, em 1991. Cresceu no meio do milharal dos Estados Unidos, voltou para São Paulo mais tarde. Faz mestrado sobre o poeta William Wordsworth na Universidade de São Paulo, dá cursos sobre Shakespeare, assina uma seção semanal sobre palavras no jornal Nexo, escreve resenhas para a revista Quatro cinco um. Também luta Kung Fu, mas não muito.

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