Deve
ter razão o Kenneth Goldsmith, poeta experimental e idealizador do fabuloso
site UbuWeb, quando diz que o verdadeiro flâneur do século 21 não é mais, como
no século 19 de Baudelaire, o sujeito que fica vadiando por ruas, avenidas,
becos, portos, bares de sua cidade, disponível para uma rápida surpresa
passante, mas sim o que vaga horas e horas pelas infovias da web. Na Colômbia
passa horas flanando pelas noites brancas de São Petersburgo. No Rio de
Janeiro, via Google maps, satélites, street view, observa gentes, lugares,
filmes, canções, sites, lives, para um romance que se passa na Austrália, onde
jamais pôs os pés.
Mas
aquele dia, no centro do Rio de Janeiro, andando, com certo tempo livre, pela
Rua México, na esquina com Santa Luzia, me deparo com aqueles olhos-que-vão-além
da poeta Luiza Leite brotando enormes sobre uma tigela de cuscuz que tinha
acabado de comprar num ambulante. Passamos semanas tentando combinar um
encontro e nunca dava certo. Mas os deuses queriam que desse e ali estávamos, esbarrados,
por coincidência. Subimos para a Cosmos, sala onde se elaboram hoje algumas das
coisas mais criativas em termos de arte ativa. Lá vi o céu do Halley, vi o sal
virando mar em cima de uma mesa, a linha reconhecível de Tatiana Podblubny
tomando a parede de desenhos. Conversa foi, conversa veio. Ganhei da Luiza o
belíssimo livro artesanal Como construir
um modelo vivo, dela e da Tatiana, cuja versão eletrônica pode ser vista
aqui:
Mas
aí já era hora de correr pro MAM, Museu de Arte Moderna, pois precisava
encontrar a artista plástica Carla Guagliardi que, como finalista do Prêmio
Pipa deste ano, tem um trabalho ali exposto: “Fuga”. Uma linha escarlate que
escapa de uma parede de concreto e atravessa tubos dourados fixados em blocos
de cimento compondo uma espacialidade nova, uma hipótese espacial, o que me
lembrou que quando dava aulas na Biblioteca Parque de Manguinhos, comunidade
bastante carente da zona norte do Rio, uma das minhas grandes e gratas
surpresas foi ouvir da aluna Eva (13 anos) que sua leitura preferida era a
mitologia oriental, em especial a história segundo a qual uma linha escarlate
presa ao nosso dedo mínimo nos une a uma outra pessoa em qualquer parte do
mundo que, sem ser a outra metade da sua laranja, é o outro extremo da nossa
linha escarlate. Um deslumbre essa fuga móvel e imóvel da Carla.
Saímos
dali e, ainda na bela passarela que leva do MAM ao centrão, Carla foi me
apontando detalhes da cidade que eu nunca tinha percebido. É impressionante
passear ao lado de um artista plástico, que vai sempre vendo formas e
diferenças onde a gente vê sempre o homogêneo. Uma das raras vezes em que
lamentei não ter celular foi durante esse curto passeio, em que ela me mostrava
como em meio a tantos bancos de pedra perfeitamente dispostos havia um em que
uma pedra meio tombava sobre a outra, ou melhor, subia sobre a outra, e como
era justamente ali que duas mulheres escolheram para sentar, ou uma faixa de
trânsito que, na avenida Beira Mar, perde o rumo e sobe a calçada.
Além
de ficar me mostrando todas essas formas mínimas ou máximas, mas sempre
inesperadas, da cidade, Carla seguia me contando como acabou se tornando amiga
de Stela do Patrocínio, na Colônia Juliano Moreira, e como acabou realizando as
gravações que geraram o “livro de poemas” de Stela, que a tornou conhecida por
um maior número de pessoas.
Um
barato ouvir Carla falando que a voz de Stela trazia, invisível, porém mais
nítida do que qualquer outra pessoa que conheceu, a própria e especial
pontuação. “Dava para ouvir suas vírgulas, seus pontos finais ou de
exclamação”.
Um poema de Stela:
É dito: pelo chão você não pode ficar
Porque lugar de cabeça é na cabeça
Lugar de corpo é no corpo
Pelas paredes você também não pode
Pelas camas você também não vai poder ficar
Pelo espaço vazio você também não vai poder ficar
Porque lugar de cabeça é na cabeça
Lugar de corpo é no corpo
[Na
Wikipedia, a Colônia Juliano Moreira é assim descrita: “A Colônia Juliano
Moreira é uma instituição criada
em Jacarepaguá,em
Taquara e Curicica,[1] na cidade
do Rio de Janeiro, no Brasil, na
primeira metade do século XX,
destinada a abrigar aqueles classificados como anormais ou indesejáveis, tais
quais doentes
psiquiátricos, alcoólatras e
desviantes das mais diversas espécies. Hoje, a área da colônia também serve
como residência para
milhares de pessoas, além de abrigar o Museu Bispo do Rosário.”]
*
E
ocorre que passando pela Biblioteca Nacional esbarramos numa bela concentração
de artistas plásticos e interessados em artes plásticas (para mim a alegria maior,
contudo, foi encontrar o amigo Deocleciano, aluno também lá da Biblioteca
Parque de Manguinhos, que me disse que não perde uma palestra dos ciclos
organizados pela Biblioteca Nacional, e a artista plástica ultra-jovem Maria de
Laet, uma das que mais me faz pensar para além do pensável, se isso faz algum
sentido). Todos estavam ali para assistir o debate sobre artes plásticas com
Paulo Sérgio Duarte e Luisa Duarte. Vamos nessa.
Da
fala de Paulo Sérgio Duarte, que não vou conseguir reproduzir aqui, recordo que
me impressionou a passagem em que disse que via nos artistas de sua geração
(Antonio Dias, Waltércio Caldas, Lygia Pape, Sérgio Camargo etc) uma enorme
exigência reflexiva somada a uma impressionante contundência plástica, mas que
na maior parte dos artistas atuais apesar de também enxergar essa contundência
plástica, não via muita exigência reflexiva, que parecia ser substituída agora
pelo “tema”, pelo “assunto”.
Mas
com o perdão do grande Paulo, o que eu gostei mesmo de ouvir foi a Luisa
dizendo que apesar de ter sido formada desde a infância nesse ambiente (Luisa é
filha do Paulo), descobrir, aos 15 anos, Nan Goldin e Louise Bourgeois foi uma
pequena revolução, um pequeno caminho empoeirado e à margem que foi dar em um
outro universo. Só lembrei daquele texto de Bataille que dizia que todos
vivemos tirando, todos os dias, poeira das coisas, das mesas, dos livros, e que
no dia seguinte ela volta a aparecer ali, o que significa que um dia ela vai
vencer.
Tive
que sair pouco antes do fim do debate e saí com a cabeça tão sacudida por tudo
o que vi e vivi nessas poucas horas de centro da Cidade que pensei que deveria
ao menos anotar num papelzinho qualquer essas coisas, que acabaram, hoje,
virando esta crônica para um blog que só um flâneur de internet vai ler. Que a
escreva justo no dia em que, flanando também ao acaso, no centro da cidade,
encontrei na Livraria Berinjela o poeta, irmão, amigo Ricardo Aleixo, que está
no Rio de Janeiro para lançar seu potente ANTIBOI, faz muito sentido, pois esse
encontro gerou outra caminhada pelo centro da cidade, junto com o grande em
todos os sentidos Thadeus Santos, caminhada tão cheia de ideias e afetos que só
mesmo reservando outra crônica para ela, porque essa aqui já foi.
Carlito
Azevedo
(Poeta brasileiro, publicado pela Cotovia)
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