Aborrecimento, quase poesia
XIV: A
Tirania do Acontecimento
Tirania
do Acontecimento
Excetuo
nascer. Isto foi um incidente que sobreveio a meus pais, não a mim. A mim, se
me aconteceram três coisas nesta vida, foi muito.
A
primeira, penso, foi o postal das costas da Esfinge.
The Back of the Sphinx, lê-se a um
canto. E também a data, que já não me lembro. Anos 1930, talvez.
Quando
caiu em minhas mãos, pensei: “Isto nunca me ocorreu”.
Nunca me ocorrera
que a Esfinge pudesse ter costas, pudesse ter uma traseira. Nunca me ocorrera
que a Esfinge fosse, de fato, uma coisa com lados, com dimensão. Não me
ocorrera pensar na Esfinge como algo posto no mundo por mãos de homem.
Mãos,
também eu as tenho.
Eram inseparáveis.
Enigma e Esfinge. Tanto que se fundiam para mim numa coisa só, não exatamente
material.
Penso que o
mistério ganhava. Que havia ali um comércio escuso de representações e que o
mistério ganhava.
Mas agora há essa
imagem. Um documento. Ela traz consigo uma separação de qualquer espécie. A
imagem se coloca como uma cunha entre estas duas coisas, forçando-me a
considerá-las insuladamente.
Lembrei de uma
anedota contada por um amigo. Sua avó, quando soube que uma filha sua pretendia
batizar de André o bebê que esperava, esbravejou: “Neto meu não vai se chamar
André, é nome de palhaço”.
Perguntaram-lhe
então por que achava isso.
Ela contou que, certa
vez, em menina, fora a um circo e vira apresentar-se um palhaço de nome André. E
portanto, André era nome de palhaço.
Agora, entre a
Esfinge e o que tenho por mistério, há um postal amarelado de anos.
Desde que o tenho,
não sou mais a mesma pessoa.
Telefono para
amigos depois do jantar. Aflijo-os.
“Adventício, é
você?”
“Sei que uma
mudança foi posta em marcha, sei que estou me transformando, mas não sei em quê”.
A segunda coisa
foi aquele homem parado à saída do metrô. Jamais saberemos – aleluia – se tinha
os papéis em dia. Impunha-se ao sobe-e-desce somente por força de imobilidade.
Cabal. Perfeita.
Pormenorizá-lo
seria tão ingrato quanto descrever a traseira da Esfinge. É possível que
trajasse paletó, gravata. Panos cinzentos sem desmentir o dia. É possível que
tivesse um relógio. É possível que tivesse rosto longo e equino, queixo
afilado, e pelo queixo, uma aspereza de fim de expediente.
Sim, tudo isto é
possível. O horário de verão, a pressa dos circunstantes, a procura de abrigo. Bastava-me,
no entanto, saber que estava lá, que existia, que se contava entre as coisas do
mundo, como de resto ainda me basta.
Talvez não me
acreditem. Seus gestos não eram mesmo credíveis. Seu gesto, posto melhor, que
era um só: a boca aberta, fazendo como se fosse gritar.
Não era
convulsivo. O grito não movia o pescoço, parecia estar preso mais abaixo, no
tórax, ali onde a voz não é nem mesmo uma sombra. Embora estivesse a metros de
distância, sou capaz de jurar que não emitia sequer um balbucio. Ele tinha,
portanto, dois fascínios: a imobilidade e o grito que não vinha.
Fixando-o, senti
tremer o maxilar.
Passavam por ele,
pelo maxilar, figuras igualmente incaracterísticas. Algumas o metrô acolhia,
outras devolvia para a tarde. Uma destas tardes abafadas de verão com todos os
bairros contraídos.
Nestes momentos, é
nos corpos que as tempestades vão se armar. Sei disso pois à época andava assistindo
a muitos documentários sobre relâmpagos e demais fenômenos atmosféricos.
Ajudavam-me a pegar no sono.
Conhecemos, por
alguns instantes, o peso das nuvens que breve descarregarão sobre a cidade. Conhecemos
as torres escuras que se arrastam sobre as torres. Conhecemos as torres intimamente, porque é nos corpos que
elas se arrastam.
Pensei de mim para
mim que aquele homem desabava, que já não podia com as aberturas, que as gotas
de chuva deviam atingir sua testa como murros. Foi nesta altura que abri o
guarda-chuva.
A terceira coisa
foi também homem, mas era outro. Veio me pedir um cigarro no meio de uma praça.
Quanto a isto, meu
código de conduta sempre foi o mesmo – dar tudo
que me pedem, sem desmentir o dia. Palavra que teria mesmo ido com ele, se
me tivesse pedido para acompanhá-lo. Teria ido com ele sem questionamentos de
qualquer espécie. Porque era um homem bastante alto. Tão alto que, ao falar,
vergava-se um pouco sobre mim.
Estas coisas, se
não nos acautelamos, confundem-se facilmente com o amor.
Pensei então,
enquanto o rapaz me fazia sombra, que não tinha clareza alguma no tocante às
mais simples questões; que não sabia – honestamente – se era do meu interesse,
por exemplo, morrer ou seguir vivendo. Vivia, morria, é claro, no passo de
todos. Mas os desejos, as vontades, estes escapavam sempre. Já não
sabia como era possível estar no mundo sem clareza. Já não sabia como pudera
suportá-lo esses anos todos.
Pensei, portanto, em
coisas claras. Inscrições em monumentos, cinejornais, dicionários, placas de
trânsito, enciclopédias, cardápios, circulares afixadas às paredes de
elevadores, guias de toda espécie. Lembrei de um manual de anatomia que vira
certa vez num sebo, que não comprara então porque me percebia – como, como? –
entendido de corpos.
Pensei em coisas
que significavam claramente. Pensei que deveria voltar o quanto antes àquele
sebo e comprar o tal manual de anatomia – Anatomia
para Artistas, chamava-se –, livro antigo, volumoso, respeitável sob todos
os aspectos. Pensei que era tempo de me reiniciar nos corpos, que não os
conhecia absolutamente, que os conhecia apenas por pontadas, por pruridos, que
isto era um equívoco terrível.
Pensei como se
olhasse para cima, olhei. O sujeito levava a chama do isqueiro ao cigarro que eu
acabara de lhe passar. Havia na praça uma igreja e sob o olho direito do
sujeito uma lágrima tatuada, coisa que me comoveu um bocado. Foi reparar que
estava tocado que o homem se voltou e foi ter com mais alguns homens acocorados
diante da igreja, todos de gorro.
Naquele momento,
não me separei de mim mesmo. Talvez não me acreditem, afinal, teria sido este o
curso natural dos acontecimentos. Não segui nem a ele nem a mim mesmo. Permaneci
por alguns instantes lá postado, no centro da praça.
Não era exatamente
o centro da praça. Mas sempre nos julgamos no centro de qualquer coisa.
Calculei quanto
tempo tinha até o fechamento das livrarias. Não era muito e a amiga por quem
esperava na praça despontava já por detrás de um gigantesco monumento à
República. Contei o ocorrido. Ela me informou que este tipo de tatuagem
geralmente pretende indicar ex-presidiários.
“Ah”, aflautei-lhe
então.
Eu pensava numa
esfinge com a boca aberta. Eu pensava numa esfinge coçando os quartos.
Ismar Tirelli Neto é poeta, ficcionista, roteirista e tradutor. Nasceu em 1985, no Rio de Janeiro. Vive e trabalha atualmente em Curitiba. Lançou os seguintes livros: synchronoscopio, Ramerrão e Os Ilhados.
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