Aborrecimento, quase poesia
XIII: Um Mito
de Origem
Durante alguns
meses, a impressão de isolamento foi quase total.
A vizinha do lado
teve um sucesso qualquer na vida e mudou-se. Levou consigo um silêncio
estudioso, uma realidade, dedirrósea cabeleira, os trajes de ginástica.
O outro
apartamento que limitava com o dela não via inquilino desde a minha chegada. Apenas
névoa, névoa e paredes.
O meu, de fundos, sempre
por descrever, situado a uma das extremidades de um corredor insaciável de
esquivas e cotovelos, como que perdia arredores com o passar do tempo, vogando
perigosamente para o centro.
Um centro.
Os demais
moradores do andar – por que não dizer do edifício inteiro? – resumiam-se a uma
banal fantasmagoria de passos, portas batidas, ondeantes pancadas no
encanamento. Decerto, havia entre nós mais eco que som. Talvez eu deva grafá-lo
em maiúscula. Era perfeitamente possível ouvir, às tardes de quarta e sexta, a
varredura, o arrastar de baldes, o zumbido da enceradeira a deslizar sobre o
piso da portaria.
Depois, conformaram-se
os demais dias da semana.
Com os elevadores.
Os elevadores
corriam silenciosos, sepulcros bem azeitados. Não sei se entre os condôminos havia
alguém que tratasse das próprias refeições. Muito me surpreenderia. A região é
bem servida de restaurantes populares.
Em seguida, vieram
as ervas, posteriormente tipificadas em boas e más. De suas sementes, que o
vento espalhava pelos pátios e terraços como uma pequena e exangue daminha de
honra, cresceram bufês vegetarianos, as promoções das pizzarias...
Houve mesmo uma
ocasião em que ficamos sem luz.
Digamos que tenha
sido a explosão de um transformador aqui pelas redondezas o que nos lançou
definitivamente na longa noite do Não-Ser. Tivemos então de usar as escadas,
onde Eco estava sempre em vias de se corporificar em algo: um vizinho, um
loureiro, uma lata de lixo.
Descia-se pianinho,
sob o fio de uma súbita precipitação.
Já o edifício
cujos fundos ocupavam quase toda a vista da minha sacada, este nunca dera mesmo
mostras de ser habitado.
Sumida a vizinha, criou-se
a vizinhança.
Os Oceanos
remoinhados, os Animais...
Estes pareciam
calmos, mas ofereciam um problema de escala.
Talvez não
estivessem calmos. É concebível que isto tenha se dado antes do surgimento das
expressões.
Durante um breve
entretempo, então, fomos o Primeiro Homem. O Primeiro Homem a se pronunciar,
pelo menos. O Primeiro Homem a não ter o que dizer.
Nós sabemos.
Porque sei que vou
morrer – voltaremos a isto mais adiante –, porque sei que tenho em minhas mãos
um signo barricado em cujo interior minha morte é incessantemente elaborada e
reelaborada, começo a construir um personagem.
Um nexo, uma
“consciência”.
Um centro.
Um centro que
siga.
Ismar Tirelli Neto é poeta, ficcionista, roteirista e tradutor. Nasceu em 1985, no Rio de Janeiro. Vive e trabalha atualmente em Curitiba. Lançou os seguintes livros: synchronoscopio, Ramerrão e Os Ilhados.
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