Mata-Borrão
Desta que munto le quer
Rei
de Portugal e dos Algarves, D’Aquém e D´Além -mar em África; a bem da Nação,
cordialmente; os meus melhores cumprimentos; desta que munto le quer.
Porque
sou velha, guardo um tempo em que saber ler e escrever era uma habilidade de
grupo restrito. As cartas eram escritas a pedido.
Sentadas
e quedas iam ditando, sem hesitações. O texto decorado, as ideias pensadas.
Como no teatro, mas sem ponto. Como num bordado, a ponto de cruz.
Minha
mãe, estimo que esteja bem na companhia de quem mais desejar, que eu cá ando
como Deus quer. Saberá que vou aí à festa. Adeus, adeus até à volta do correio.
Desta que munto le quer.
Para
os namorados escrevia-as eu, sozinha. Quando sozinha tinha acento grave no o.
A
introdução, meu amor, trazia o sangue à cara. Quando for à festa, havemos de
dançar. Isso não! Riscava-se. Deixam-se as saudades para o final, sem beijos.
Arrisco o abraço, amachuca-se o avental debruado a grega e a nervos.
No
final, eram lidas pausadamente. Mistério denso, esse das ideias serem ouvidas numa
folha pautada que se tirava do bloco, com jeito e determinação. O rrrrrrrrrr do
papel a desprender-se fazia parte da coisa. Dessa coisa séria, as cartas a
pedido.
Dobrava-se
então a folha. Cirúrgica, a unha do polegar no vinco. E se de vincos percebiam
elas. Nas calças, nos lençóis, nas cortinas, na massa folhada.
O
cerimonial do cuspo deixava a língua áspera, a saber a envelope. Endereços sem rua,
sem número. Apenas o nome da aldeia, do concelho e da província. Seriam
levantadas na venda onde havia telefone, bacalhau, massa, sabão, ponteiros para
as lousas da escola, copinhos grossos e opacos com vinho e bolachas de
baunilha.
Maria João Forte é socióloga
Sem nada tirar mas com muito para inda le pôr. Já para não falar das cartas de luto com envelopes com esquadria de fumo negro onde os remediados mandavam "sentimentos" e os abastados enviavam pêsames.
ReplyDeleteExatamente o que eu procurava sobre Esquadria de Aluminio, obrigada!!
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