Aborrecimento, quase poesia



XII: Três Passeios



            Abrindo os braços em discreta atitude de crucificado, consigo abarcar o início e o fim da piscina pública.
            Um gesto que uma criança faria logo antes de pegar no sono, talvez. Uma tentativa de tornar material o percurso de uma noite até a manhã seguinte. De retirar da sombra, da ininteligibilidade, dado caminho.
            Cabeça inclinada para a direita, o que penso enxergar é uma construção rematada.
            Este movimento da cabeça leva um intervalo de dois anos, aproximadamente.
            Dia desses, folheando o Kwaidan, dei com a seguinte fortaleza: “a space of garden”.
            Alguém atravessava, na narrativa, “a space of garden”.
            Formula-se então, agora, um espaço de braços, um trecho de braços, um intervalo de braços.
            “Um intervalo de braços”, anoto às pressas.
            Circulo.
            Estendendo-os assim, como se tivesse as tríplices mãos pregadas a ripas de madeira, consigo representar certa trajetória rumo a um estado de completude.
            Um pensamento que sempre me ocorria quando me via constrangido a consultar os Classificados de qualquer jornal atrás de emprego ou moradia era o da eternidade do círculo.
            Não era um pensamento sumoso. Não impressionava pelo que pudesse conter de desdobrável, de cultivável.
            Impressionava por sua violência.
            Era, antes de mais, pensamento de secura extrema. Uma aproximação de grande silêncio. Um remate. Um remate antes mesmo de começar.
            Despregando as mãos das ripas de madeira e fechando os braços em discreta circunferência, crio um espaço perfeito onde a piscina pública pode existir
            Crio um espaço propiciatório.
            Há uma inauguração na minha mão direita.
            A mão que escreve.
            A mão que circula os Classificados.

***

            “Não saberei mais caminhar nessa cidade”, ele pensa, pesando algumas notícias das quais não conseguira se desviar a tempo.
            Sabe-se que o passado, o pretérito, sugere intimidade. “Rumou então para o bairro onde nasceu e passou grande parte da infância, receando não o reconhecer”. Pode tornar-se uma estratégia: tornar tudo antigo e íntimo, trabalhar por esta viscosidade.
            “Receio reconhecê-lo, receio não reconhecê-lo. Eis o ponto a que chegaram as coisas”.
            O medo, apresentado de certa maneira, pode também tornar-se tático, um ardil, uma forma de enredamento. Certo modo de dizer-se com medo. Uma suavidade, uma decência. Um medo pálido, registrado apenas nos olhos que alternam entre cerrada ausência e a vaporosa tensão do retorno. Um medo profundamente matizado pelo próprio pudor do medo.
            Vejam.
            Uma pessoa tem medo e usa este medo como uma espécie de túnica semitransparente, uns volteios, não mais. Um medo eterizado. Um medo aeriforme. Um medo sem consistência, palpabilidade, um medo que desliza sem fixar-se por sobre a realidade dos objetos. Um medo que, por não reconhecer ameaça direta, não alcança profundamente a necessidade de reagir. Um medo que já não parece dizer nada sobre a perpetuação de si, um medo que parece ter se alçado a patamar diverso, um medo que já não é o medo da dor, da interrupção, da morte.
            Vejam.
Medo sem predicado. Medo que não se resolve nem nas imagens típicas do medo nem nas reações típicas ao medo. Um medo composto, medo medido que não desemboca. Não grita. Não faz demandas. Se já fez algum dia, não importa em nada. 
            Um medo que torna espectral aquele que teme. Medo que nos torna vaporosos e agradáveis. Um medo que é como a nudez. Mas a nudez de um corpo desejado. Um tipo desejado.

***

            “Não saberei mais caminhar nessa cidade”, pensou.
            E depois:
            “Verei a casa. Felizmente estará livre de nascer, crescer, abandonar. Nenhum vínculo comprovável. Nenhum visgo. Será apenas mais um espaço interdito. Um entre tantos.
Caminharei em círculos em torno da construção. Darei por irrecuperáveis as vistas de suas janelas, a disposição dos móveis, a antiga sufocação.
Verei a casa. Felizmente estará livre de retornos.
Verei a casa enquanto ela muda.
Enquanto se lava, se desveste, enquanto se descontamina.
Não se decompõe.
O que quer que seja que a habite agora deve semelhar em tudo uma espera.
Sua nudez, protegida por paredes cujas nervuras posso ainda sentir nas mãos. Sua nudez sem escândalo, achatada em composição, nada mais. A nudez de um morto. Volumes, massas, espaços vazios. Mesmo o chão. Mesmo o chão não será mais aquele pelo qual nos rastejamos por tantos e tantos anos.  
Não aventuro dizer que a casa tinha uma alma.
Não aventuraria dizer alma em referência ao que quer que fosse.

Mas um corpo, uma carne, isto ela tinha”.








Ismar Tirelli Neto é poeta, ficcionista, roteirista e tradutor. Nasceu em 1985, no Rio de Janeiro. Vive e trabalha atualmente em Curitiba. Lançou os seguintes livros: synchronoscopio, Ramerrão e Os Ilhados.

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