Tuiuiú
É difícil. Todos os dias quando eu acordo, tenho que levantar e
criar as coisas do mundo, porque nada ainda existe. Convoco-as. As coisas
quando surgem não têm medo de encostar em mim. Nem mesmo as que vieram sem
tampa. Hoje acordei e fiquei um tempo deitada no chão: já existe o chão, a
casa, a vassoura, a sujeira e você. Cinco coisas – e algumas ações por
fazer. Não sei se vou fazê-las. A preguiça sempre existiu, então nunca precisou
ser inventada. Olho para mim mesma e sei que tenho inúmeros dedos nas mãos, o
que significa que às vezes minhas contas saem erradas. Cinco coisas ou muitas. Todas
as noites, quando estou dormindo, elas se aproximam e decoram meu nome. Repetem
meu nome, quase em silêncio. Mas as coisas se dissolvem nos dias, e por isso
estou sempre as criando de novo.
Saí de casa. Caminhei
um tempo no sol (meu sol) e criei a terra à minha frente com cada passo que
dei. Conheço apenas uma pessoa que fez isso antes. Voltei ensolarada e morna.
Como uma pedra do deserto – dessas que você leva no bolso. Encontrei um
homem que me perguntou se seu braço direito poderia ser uma espada, se tudo
bem. Eu disse “apenas a primeira letra do alfabeto, a letra Alif, pode ser uma
espada”. Ele entendeu, mas ficou triste. Então eu lhe dei cabelos compridos, que
são lindos.
Você se lembra do dia
em que nós dois, juntos, tiramos todas as pedras do seu bolso e as colocamos na
mesa? Você me convenceu a cobrir cada uma delas com plástico-filme. E eu
aceitei, mas foi dessas coisas que aceitei mesmo me sentindo perversa. Peguei
uma delas na mão e a trouxe até meus lábios. Dei-lhe um beijo e nos olhamos,
confusas, ninguém riu. Apertei-a por mais um tempo contra minha boca, até que
meu calor a fizesse ficar minimamente morna. Passamos muitos dias
em silêncio. Nesse período, deitei-a todas as noites no travesseiro ao lado do
meu para que sua presença calma guardasse meu sono curto. Um dia, acordei antes
que ela soubesse e a ouvi dizendo, sozinha: “eu nunca nasci. Nunca precisei
nascer”.
Você não sabe dessa
história, ela é secreta. Um dia nós dois seremos felizes, eu e você. Isto é, se depois das
pedras, conseguirmos resolver a invenção das frutas. Porque elas sempre morrem;
eu as invento com vida demais, é por isso que à medida que ficam mais maduras
vão enchendo o ar ao redor de um cheiro cada vez mais forte, um cheiro forte de
fruta. Você já deve ter percebido. Elas passam da medida. As frutas multiplicam-se
em si, apodrecem de ser tão elas mesmas. Um dia você vai fazer a coisa mais
linda de todas, vai girar a mão no ar e inventar o figo. Você vai dizer: “o
figo não é uma fruta, é uma flor invertida. Cada semente, cada uma das milhares
de sementes que estouram na sua boca ou na minha, na verdade é uma fruta em
estado de espera – precisa ser fecundada por uma vespa e então nascer”. Você
vai dizer: “o figo tem muito tempo futuro dentro de si. Eu posso te oferecer
quantos você quiser”.
Sofia Nestrovski nasceu em São Paulo, em 1991. Cresceu no meio
do milharal dos Estados Unidos, voltou para São Paulo mais tarde. Faz mestrado
sobre o poeta William Wordsworth na Universidade de São Paulo, dá cursos sobre
Shakespeare, assina uma seção semanal sobre palavras no jornal Nexo, escreve
resenhas para a revista Quatro cinco um. Também luta Kung Fu, mas não muito.
Muito bom! gostei... que esse futuro estoure em sementes diversas em sabor, aromas e sonhos!
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