As Palavras das Cidades

PARA LÁ DAS CIRCUNVALAÇÕES

Uma cidade? Uma cidade não são só os cafés, os boulevards, os plátanos, as montras, os táxis, os eléctricos, os japoneses, os museus, igrejas e teatros, mercados e hortaliças, não, nem só os hotéis, nem só as estações  de comboio enfumaradas que pintou Monet.
Uma cidade, eu vi-a.
Vi-a, sim, da varanda  de uma pensão na Avenida dos Aliados, no Porto, era Agosto, quente, mesmo quente, em 1954, tinha eu acabado de fazer seis anos e o meu pai tinha um Chevrolet com que fomos até La Toja, na Galiza. Ainda era escuro, seriam quatro da manhã .  Que faria eu com a minha mãe nessa varanda  sobre a rua Elísio de Melo, a que sai dos Aliados e vai desembocar na Rua de Ceuta? Seria um ataque de asma, para estar ao colo da minha mãe àquelas horas? Ou só o calor – que, no Porto, quando se abate, é sufocante?
Sei que se viam as oficinas   de um jornal, ”O Comércio do Porto”, isso sei.
E  ainda hoje a vejo, a  essa tipografia, os tipógrafos com batas azuis, automóveis, umas carrinhas, os ardinas descalços, uns mais velhos carregados de jornais, era a hora da saída, era o Porto que amanhecia.
E uma cidade é isso mesmo, Paris, Porto ou Lisboa que também o  maravilhoso Sérgio Godinho canta em canção que me encanta, Lisboa que amanhece.
E essas horas mortas, as cinco da manhã,  canta-as tão bem o indolente Jacques Dutronc, Il est cinq heures/ Paris s´éveille. E como eu gosto dessa cantiga longuíssima que escreveu Claude Lanzman (aquele que anos depois viria a fazer o tremendo “Shoah”): “são cinco da manhã/ é  a hora em que os travestis se vão barbear/  Paris acorda.”
Uma cidade, eu vi-a.
E depois, depois, vi os filmes americanos. E  vieram confirmar-me que era assim mesmo uma cidade, rotativas, jornais, madrugadas, cigarros, nervos, olheiras, discussões, lutas, liberdades. Eram filmes em que se viam jornalistas e se via boxe, sempre a preto e branco, claro. E homens corruptos e homens honrados. E os jornalistas fumavam pela verdade.
Pois, isso era a cidade.
Ainda a conheci.
Mas pronto, os jornais, se ainda saem de manhã, já não são comprados nos cafés, nos cafés já não se fuma, andamos por casa de roupão até mais tarde a beber fake bicas nespresso  e sabemos tudo (tudo?)  pela net – o que é bom e é triste, sozinhos aqui, cada vez mais sozinhos.
E agora as redacções saíram das cidades, escaparam-se para lá das circunvalações, os Isaltinos cederam-lhes terrenos longe de nós. Ou fecharam. No Porto já só há um jornal. Eu gostava de dar um salto às redacções,  passar pelo Diário de Lisboa para entregar artigos e receber bilhetes de imprensa para os cinemas e os teatros (ia falar com o senhor Quiñones, tinha lá sempre dois) , cruzar-me com a Isabel da Nóbrega n´A Capital, ela sempre janota e sempre a escrever, reunir com o Francisco Sousa Tavares – ou o Rodolfo Iriarte - quando vieram, por breves tempos, aqui para a Joaquim António de Aguiar, gostava de subir as escadas para ir à redacção do República, era a minha cidade e andava de eléctrico.
E era assim a cidade.
E gostava de ir às editoras. Nesses anos eram todas por aqui, apenas a Europa-América se “modernizara” e fugira da Rua do Alecrim para se instalar, industrial, na estrada de Sintra -  e para lá levara o Villaverde Cabral e depois o Luis Filipe Salgado de Matos. Foi a primeira a desfalcar esta vida das cidades, foi.
O que era bom era ir entregar traduções à Portugália, na Avenida da Liberdade, quase nos Restauradores (um 3º andar?) e cruzar-me com o José Gomes Ferreira ou o Luis Amaro, era bom ir à Ulisseia na Rua da Misericórdia ver se ainda arranjavam um exemplar do Hugh Thomas (“retirado do mercado” claro)  e, antes, ver o António Sérgio, carregadinho  de papéis, entrar na Sá da Costa para ir rever provas. E cumprimentar o Aquilino e o Abel Manta à porta daquela Bertrand. Ou, mais tarde, ir mais longe, à Estampa (à Escola do Exercito) e encontrar o Herberto; ou, mais longe ainda, na Rio de Janeiro, ir às Iniciativas Editoriais e ficar duas horas a falar de Angie Dickinson ou Lee Marvin com o Nuno Brederode (que também sabia tudo sobre o Charles Bronson.)
Sim, Turim é a Einaudi, sim, Genève é a Skira, Milão é o Corriere e a Feltrinelli, Paris é a Gallimard ali mesmo em Saint Germain (já não é) e claro, Richmond não existe sem   os Woolfs e a Hogarth Press nem Bloomsbury sem vislumbrarmos o cruel Eliot sentado no seu escritório da Faber em plena Great Russell Street, Barcelona é a Seix Barral e o escritório do Biedma,  as cidades são os livros a serem feitos e os jornais em hora de fecho, redacções e editoras são camarins sem horários, sempre a funcionar, cheiro das tintas, carmins e de pó de arroz.
Uma cidade são as editoras, os jornais,  papelada, é onde se prepara o dia.
E há a Cotovia! Que ainda é ali mesmo por trás de onde foi o jornal “República”, ainda há uma editora nesta cidade!
Olha, hoje era mesmo isso que me apetecia, descer aqui a Alexandre Herculano e apanhar, lá pelo meio dia, o Fernando Assis Pacheco carregado de livros a caminho d “O Jornal” que também foi na Avenida da Liberdade, dois dedos de má lingua, um abraço grande, era isso mesmo.


Jorge Silva Melo



Jorge Silva Melo nasceu em Lisboa em 1948, estudou na Faculdade de Letras de Lisboa e depois na London Film School. Crítico de cinema e teatro, encenador e actor, fundador, com Luis Miguel Cintra, do Teatro da Cornucópia, estagiário na Schaubühne - com Peter Stein - e no Piccolo Teatro/ Scala de Milão - com George Strehler -, argumentista, professor, tradutor, ensaísta, dramaturgo, realizador de cinema. Dirige, desde 1996, os Artistas Unidos. 

Comments

  1. Boa, Jorge. E temos mais um espaço para nós deliciarmos. Graças à Cotovia que tem esse cantinho ao lado de uma bejeca na Trindade. Que bom.

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