As Palavras das Cidades
Foi em 2004 que publiquei esta
croniqueta. Olha, passaram treze anos. (Não leiam treuze, por favor!). E este
verão lembrei-me tanto, lembrámo-nos tanto de Barcelona, cidade das palavras.
Segue o velho texto, chamava-se AS
PALAVRAS DAS CIDADES, é capaz de vir a ser o título geral destas historiazinhas que prometi à minha editora, a
Cotovia, passarinho madrugador como
agora eu sou.
“Passava das seis da manhã quando
fechei a luz, há muito que não ficava noite dentro a ler, corpo e olhos
doridos. Estive a ler El cuaderno gris,
diário de Josep Pla daqueles anos barceloneses de 1918 e 1919. São oitocentas
páginas em livro de bolso, traduzidas para castelhano, terei lido metade esta
noite voluptuosa ao deus dará.
Casinos, escolas de belas-artes,
bebedeiras, jornalismo, aulas, bordéis, as ramblas, o horror pela decoração do
Palau de la Musica que agora achamos belo, um permanente ir e vir pela cidade
tumultuosa, as inquietações, as leituras, aquele desgosto pelo naturalismo de
Zola, a surpresa com Jules Renard, o desprezo por Galdós, o interesse por
Ayala, a ânsia por uma outra literatura, mas tudo enquanto se vai e se vem da
casa de família, do verão que avança, da
Paquita de umas noites, e os encontros durante o dia e toda a noite com os
amigos literatos, os encontros das ruas.
São as primeiras páginas de Josep
Pla que leio, ele cujas obras completas perfazem quarenta e seis volumes da
mais vibrante prosa catalã; não sei se lerei mais, foi o acaso e a curiosidade
que, num domingo de Madrid, me fizeram pegar neste livro, mesmo antes de
regressar ao comboio.
E que prazer, que volúpia
deambular assim, na companhia de um pensamento, na companhia de um homem
inquieto, dias banais, dias intensos, dias como os outros ou dias de excepção,
ficar assim a passear até ao mar por uma Barcelona que página a página se me
torna familiar, já Picasso se fora para Paris e tudo analisara, cubo após
refracção, mas ainda Lautrec lhe iluminava o absinto e a manzanilla.
Há cidades que se fazem palavra,
e Barcelona conheço-a das ruas mas também das memórias, dos diários, de Biedma
e de Federica Montseny, de Gimferrer e Barral. De Merce Rodoreda, claro (a
alegria que tive quando descobri que a Praça do Diamante existia mesmo e ali
bebi uma horchata!) Às vezes transformam-se em poesia, Montjuich em Biedma, o
cinema Rosales em Cibeles, Madrid foi
feito para o Ruy Belo, o Jardim das Amoreiras
para o José Gomes Ferreira, as Avenidas Nova para a Fernanda Botelho -
mas muitas vezes são só estas notas avulsas, estes apontamentos, estas entradas
de diário que captam a cidade no seu torvelinho, na sua desordem, no encanto
banal das suas ruas esquecidas.
E Barcelona transformou-se em
letra, poesia, diário, jornal, romances de Marsé finalmente editados entre nós;
há cidades mais cinematográficas, Roma de Rosselini ou da Anita Ekberg, Rimini
de Fellini, outras que chamaram a si as cores da pintura, Monet no Tamisa.
Mas eu gosto destas cidades,
destas terras que se transformam em letra, apenas letra, letra em movimento,
letra incerta, cujo rosto mal vemos, o bairro pobre de San Freddiano nos
romances de Pratolini, Novate nos
extraordinários textos de Testori, a
Gândara de Carlos de Oliveira. Que poder é este da palavra para tão bem
construir cidades, ruas e labirintos de Dublin e Praga, o sul de Faulkner ou o
país impensável de Juan Carlos Onetti, a Buenos Aires estrambótica de Arlt?
Mas é a rudeza do diário, a sua
deambulação, o seu inacabado o que me acompanha hoje por uma Barcelona de
literatos, soldados, pintores e prostitutas, uma Barcelona que se sonha Paris e
vibra naqueles anos esquecidos de guerra e revolução. E que hoje me assombra
pelas notas aplicadas de um homem que me serviu de guia, mago e amigo.
Para esta noite, já pus ao lado
da cama “A Memória das Palavras” do José Gomes Ferreira, só para me lembrar de
Lisboa.
E depois ouço Alicia de Larocha, ao piano, catalã, pequenina, a
tocar o segundo concerto de Brahms, como uma noite, há muitos anos e com sala
meio vazia, tocou no Coliseu dos Recreios e me fez renascer esta obra que eu
julgava caduca.
Barcelona, cidade das letras,
cidade da música, cidade dos cabarés.
Ah, Barcelona, cidade da má vida
ali ao Paralelo em redor do “El Molino” que os franquistas proibiram fosse
“Rojo”, como em Paris podia ser.
Ah, Barcelona, cidade amada pelo
meu pai.
Ah, Barcelona, “mapa de tantas
sombras”, como tão justamente lhe chamou a nossa amiga e grande escritora
Lluisa Cunillé.
Jorge Silva Melo nasceu em Lisboa em 1948, estudou na Faculdade de Letras de Lisboa e depois na London Film School. Crítico de cinema e teatro, encenador e actor, fundador, com Luis Miguel Cintra, do Teatro da Cornucópia, estagiário na Schaubühne - com Peter Stein - e no Piccolo Teatro/ Scala de Milão - com George Strehler -, argumentista, professor, tradutor, ensaísta, dramaturgo, realizador de cinema. Dirige, desde 1996, os Artistas Unidos.
Os catalães têm uma palavra para a nossa "saudade", portanto não estamos sozinhos como criamos e como queríamos.
ReplyDeleteSobre "palavras e Barcelona" leia-se ainda o artigo de Félix Cucurull dedicado a Salvador Espriu, para a "Colóquio/Letras" (nº9, setembro de 1972). Link:
http://coloquio.gulbenkian.pt/bib/sirius.exe/do?author&author=CUCURULL,%20FELIXE
Paulo Costa
Paulo Costa, falta o acento em críamos. Volta sempre.
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