Aborrecimento, quase poesia
XI:
Notas de Aniversário
Não, a cidade já
não é o corpo de um homem.
É,
afinal, uma cidade.
Foram
anos até encontrar, descendo por seus olhos, por sua voz de seminário, os cafés
com mesas postas do lado de fora.
A
estação sem toldos cinzentos.
Parece,
no entanto, que a encontrei de fato.
Os
olhos nela põem-se eretos.
Indiferente
que já não enxerguem com a mesma nitidez de antes.
Via claro um
delírio de cidade.
Agora caminham os
olhos e analisamos sua postura (diz-se de certos olhos que rebolam).
Há
uma cidade a declinar.
A
cortar em fascículos, acontecimentos, traços distintivos.
Uma
cidade a dividir em subterrâneos, postos de abastecimento, pâncreas.
Há
nela uma cidade que pernoita em carros estacionados.
Tresnoita
em copas pequenas e sujas.
Uma
cidade que contenda, gesticula e chora pelas ruelas do centro, certa de passar despercebida.
Uma
cidade que me contorna nas praças, fazendo que não me vê.
Há
comércios vazios, comprimentos vazios.
Há
mesmo vazios, dimensões inteiramente desprovidas, fundas, lavadas em luzes
brancas, como jamais pensáramos encontrar fora de nossos dons imaginativos.
Há
pesadas esquinas sem nada, ninguém.
E
por vezes escuridão tão densa, tão testuda, que chega mesmo a parecer-nos
teatral.
*
Faço
amanhã 32 anos.
O sangue declara o
fim de toda peripécia.
O risoto que
cismei de preparar resultou, é claro, cítrico demais.
Empedra-se à
altura dos pés.
Não quer mais
giro, quer um busto de Homero.
Um belo busto de
Homero, é o que quer o sangue, o que querem os pés.
Mas meus convivas
são de uma generosidade a todo transe.
Elogiam-me.
Querem
que eu esteja descansado.
(Pela
manhã, o meu namorado põe sobre mim os belos olhos ramalhudos, liga a
cafeteira, sorri).
Mostram
a lua, o bolo, perguntam-me que filme quero rever, o que é isto que estamos
ouvindo.
A
lua usina metáforas ainda.
Para fazer-se ao
mar mais uma vez, o sangue coloca a condição de avermelhá-lo todo.
Não é a primeira
vez que o digo.
Para mim, existe
apenas a aventura de manter as coisas em seus devidos lugares.
Tratar do bom
preenchimento das palavras.
Fazer com que as
coisas não se transformem assim indefinidamente,
deter – em algum momento – as sucessivas fusões.
Meu insucesso como
cronista deve-se fundamentalmente ao fato de quase não ver ninguém ao longo do
dia.
Aqueles que vejo,
aqueles que amo, mete-me medo escrever sobre eles, medo de sujá-los.
Para mim, existe
apenas este medo.
Detê-los,
sujá-los.
Água quente e
bicarbonato de sódio costumam dar jeito às manchas de café sobre o carpete.
Não é a primeira
vez que o digo.
Faço 32 anos
amanhã.
*
Com
32 anos, consigo já inventar um de meus cinco irmãos.
Uma
ninharia, mas é de notar.
Alguns
vão dependurados em montanhas. Outros adentram salões encerados, põem-se à
frente de uma congérie de seis ou sete indivíduos sentados em posição de lótus,
dizem coisas vagas e alentadoras, ocasionalmente justas, mas apenas
ocasionalmente.
Alguns
já relanceiam para seus filhos pequenos, que caminham próximos demais da borda
da piscina. Tratam, nos dias úteis, do papelório referente à dissolução de
famílias em pequenos escritórios brancos e bafientos.
Alguns
marcam em suas agendas uma visita a uma cidade próxima, para a revisão do
aparelho auditivo.
Alguns
manuseiam catanas. Alguns passam a tarde dedilhando Greensleeves ao violão.
Alguns
sonham ainda, bem-aventurados, são de uma pureza indescritível.
Impossível,
portanto, de descrever.
Entre
estas figuras, porém, uma se recorta clara (como um cristal? Como uma imagem?).
G.,
uns doze anos mais moço, recreador em hotéis que atendem a região, que passa
grande parte do ano em dormitórios improvisados em recantos de horrorosas
construções neoclássicas.
Dias
e dias inventando brincadeiras para filhos de fazendeiros.
Complementa
renda produzindo eventos. Raves e
coisas assim.
Provavelmente
trafica. Mas nada sórdido.
Vejo
os extensos gramados onde ele se dirige às crianças, sempre aos berros, sempre
um pouco mais enérgico que as próprias crianças.
Sobre
todas estas coisas vejo sempre sóis de grande abatimento. Quando há chuvas, são
concentradas e torrenciais. Em seguida, uma grossa camada de poeira de barro
assenta sobre todas as superfícies, preenche cada ruga do corpo e da paisagem.
Mas
as rugas são assunto meu.
Há
chaves para ver este meu irmão. A juventude. Grande espontaneidade. Caráter
agregador. Saúde e astúcia transbordantes. Um descabimento de energia no corpo
bem-apanhado. Um rosto como se estivesse sempre a perguntar: “e agora, que
vamos fazer agora? ”.
Que
cidade, que festa genial? Que programa?
Falando verdade,
um rosto que raramente coloca perguntas.
Mas que se desenha
com uma expectação descomplicada, contínua e geral.
Penso que G. é um
homem feliz, um homem genuinamente feliz.
Um homem que escapou.
E que nesta
escapada, não causou a ninguém nenhum dano irreparável, não se mostrou nem mais
nem menos imoral que toda a gente.
Pelo menos é o que
parece.
Não desgraçou
ninguém, não se desgraçou. Não se tornou um miserável.
Mesmo
quando está na cidade, é raro vê-lo.
É
solicitado por todos. Deseja responder. Dar fluxo.
Há
sempre algum amigo que acaba de bater com o carro, que acaba de safar-se por um
triz.
Já
quis escrever sobre este meu irmão diversas vezes. Lembro, por exemplo, de
perguntar-lhe insistentemente sobre o Natal dos recreadores, de pedir uma
narrativa. Antes de responder, olhava discretamente para trás, certificando-se
de que todas as luzes da casa estavam apagadas. Em seguida, acendia um cigarro
de palha com meu isqueiro.
“Não é nada. O que
você quer saber? ”
Não, ninguém
parece lá muito triste de estar longe dos seus. Há telefonemas, trocas de
mensagens, estas coisas. Depois, no refeitório do hotel, come-se com os outros
funcionários. A ceia é farta, pelo que posso entender, condizente. Os da equipe
de recreação, no mais dos casos ainda mais jovens que G., já estão quase todos
empilecados à hora da refeição. Começam a entornar assim que se veem livres das
crianças. Mas isto não é só no Natal.
Enquanto fala, seu
telefone não para de vibrar, emitir sons. Solicitado sempre, mesmo nestes
momentos mais, por assim dizer, contemplativos.
O que você quer
saber, então? O que você procura? Alguma melancolia subjacente? Imagens
exemplares de alienação, amargura? Uma falta misteriosa? Um excesso igualmente
misterioso?
É meu irmão mais
nítido, o irmão que pode passar meses sem dar as caras, que quase nunca está lá
onde se reúnem os seus, mesmo quando consegue uma folga para visitar a cidade.
O irmão que conduz
as crianças por um gramado.
Flautista de
Hamelin.
Futuro senador.
O irmão que nos
sorri, vivíssimo, ao pegar de uma gaveta do armário da cozinha as chaves do
carro do pai.
"Ismar Tirelli Neto é poeta, ficcionista, roteirista e tradutor. Nasceu em 1985, no Rio de Janeiro. Vive e trabalha atualmente em Curitiba. Lançou os seguintes livros: synchronoscopio, Ramerrão e Os
Ilhados".
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