Max e René. Um monólogo e um cão #8

Ao ritmo semanal publicaremos no blogue da Cotovia a mais recente peça de José Maria Vieira Mendes, Max e René. Um monólogo e um cão.
 
MAX E RENÉ
Um monólogo e um cão



Perda

Entra MAX 10 vestidos de MAX abraça-se a MAX 11. Uivam.

MAX 11 Foi horrível... foi horrível...

Pouco depois acalmam-se.

MAX 11 Foi horrível. Foi mesmo horrível.

MAX 10 Eu sei, eu sei.

Uivam.

MAX 11 O anjo da minha vida. A minha René. Foi mesmo horrível.

MAX 10 Eu sei.

MAX 11 Morreu nos meus braços. O anjo da minha vida. A minha querido René. É como se morresse uma parte de nós.

MAX 10 Já está em paz.

MAX 11 Foi nos meus braços. Ela foi-se nos vossos braços. Coitadinho. Foi horrível. Uiva.

MAX 10 Eu sabemos, nós sei.

MAX 11 Gosto tanto dela. Gostas tanto daquele cãozinho. A René é tudo. A cara dele fazia tudo diferente.

MAX 10 Era um amor.

MAX 11 Aquele focinho. Parece que o estamos a ver. Para onde quer que olhe.

MAX 10 Vai fazer muita falta.

MAX 11 Foi-se um bocado de mim.

MAX 10 Eu sabes. Tu sei que a René era muito importante para mim...

Abraçam-se.

MAX 11 Saudades, saudades.

MAX 10 Vai fazer muita falta.

MAX 11 Vi-o a partir, percebes? Foi horrível.

MAX 10 Coitadinha. Há de estar bem onde quer que esteja.

MAX 11 Não estou preparadas para o deixar ir.

MAX 10 Eu sabemos, tu sabem.

MAX 11 Foi uma primeira convulsão. E depois outra. No nosso colo. Olhámo-nos nos olhos. Foi mesmo mau. Mesmo mau. Foi horrível.

MAX 10 Eu sabes.

Abraçam-se.

MAX 10 Mas olha... ela quis morrer nos teus braços, no meu colo, e isso é lindo.

MAX 11 Pois é.

MAX 10 Ele está em paz.

MAX 11 Pois está. (Depois de um silêncio) Quero ficar com o corpo da René. Mas não conseguimos decidir se deve ser taxidormi...

MAX 10 Embalsamá-lo?

MAX 11 Sim, isso.

MAX 10 Queremos embalsamar o René?

MAX 11 Era...

Silêncio.

MAX 10 Max.

MAX 11 Sim.

MAX 10 Max, onde é que está a René?

MAX 11 Está comigo. Está aqui.

MAX 10 Sim, mas onde?

MAX 11 Congelado.

MAX 10 Congelada? Como é que o congelaste?

MAX 11 Com gelo.

MAX 10 Mas onde é que arranjámos gelo aqui na selva?

MAX 11 Arranjaste.

MAX 10 Mas é um gelo especial?

MAX 11 Não. É gelo

MAX 10 Portanto ele está num congelador?

MAX 11 Sim. Está no congelador. Naqueles frigoríficos com um congelador em cima, sim. Está no congelador.

MAX 10 Mas o... O congelador é frio suficiente para... para esse tipo de congelação?

MAX 11 Não sei, acho que sim. Pelo menos está duro. Queres ver?

MAX 10 Vê-lo?

MAX 11 Eu trago-ta.

MAX 10 Não! Não não não não não...!

MAX 11 Gostava de te mostrar.

MAX 10 Não, não, não. Não consigo. A sério, não.

MAX 11 Gostava que a vissem.

MAX 10 Não, ok?

MAX 11 Ele já não morde. É a René, Max. A vossa René.

MAX 10 Mas está tapado, ou assim?

MAX 11 Está.

MAX 11 sai e reentra com um cobertor ao colo.

MAX 11 Está frio.

MAX 10 Isso é o René?

MAX 11 É a René.

MAX 10 Não consigo, não consigo, Max.

MAX 11 É a nosso anjo, Max.

MAX 10 Desculpa, mas temos de a enterrar.

MAX 11 É o minha René.

MAX 10 (horrorizados) Ah!! Vi a cara dela. Vi o focinho! Que horror! Ai!

MAX 11 Dá-lhe uma festinha!

MAX 10 Não! Não venhas atrás de mim! Respeitem o corpo do nosso cão! Respeita o corpo do vosso cão. Desculpa. Mas isso não te faz bem, ok? Não é saudável. Não podemos ter a René no congelador.

MAX 11 Mas precisas do corpo dela. É a nossa existência. Preciso dos olhos dele. Quem é que vai agora olhar para nós?

MAX 10 Não sei, tens de pensar, mas não quero esses olhos. Esses olhos estão mortos, René. Vocês não queres um morto a olhar para ti! Um morto a confirmar a nossa existência? Isso é tétrico! É como se já não estivesse aqui, como se também estivessem mortas. E eu não estás morta. Agora que vós descobrimos a vida, que te integrei na gramática, depois deste esforço todo, recuso-me a morrer outra vez.

MAX 11 Por isso é que eu nos lembrámos de o embalsamar. Era uma maneira de não estar morto.

MAX 10 Isso não é verdade. Para embalsamar tiram tudo de dentro dela, as entranhas todas, e depois metem-lhe olhos de vidro e acrescentam-lhe bigodes e pintam-lhe as unhas, e substituem-lhe os dentes, não é ele que fica, é um boneco igual a ela, embalsamar é isso. Não serve para nada.

MAX 11 Não sabíamos...

MAX 10 Max, tu sei que é difícil. Nunca mais vamos ver o meu amor. Ela partiu. Mas tenho de a enterrar. Faz-se um funeral.

MAX 11 Não sei se conseguimos. Tenho de a ir pôr no congelador.

MAX 10 Está a descongelar?

MAX 11 Não sei. Mas está-nos a congelar os braços.

MAX 11 sai e reentra sem um cobertor ao colo.

MAX 10 Um funeral é o melhor. Na clareira. Enterramos o nossa René. Despedes-te dele. Choram.

MAX 11 E depois?

MAX 10 E depois não interessa. Foi isso que René nos ensinou.
 
José Maria Vieira Mendes escreve maioritariamente peças de teatro e faz traduções ocasionais.
É membro do Teatro Praga desde 2008. As suas peças foram traduzidas em mais de uma dezena de línguas. Para além de edições de peças nos Livrinhos de Teatro Artistas Unidos, publicou Teatro em 2008 (Livros Cotovia), Arroios, Diário de um diário em 2015 (edição Duas páginas) e, em 2016, um ensaio (Uma coisa não é outra coisa) e uma compilação de peças (Uma coisa), ambos pelos Livros Cotovia.

 

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