Mata-Borrão
Tive
doze filhos vivos e outros tantos mortos. Era com um raminho de salsa, com o
talo. E olhe que nunca alcancei. Faria se alcançasse! Dizem que a gente
emprenha se alcança. Olhe lá!
Tropeçava
eu na forma como secava os olhos, passando-lhes os dedos de pele grossa,
tratados a lixívia, ó menina a água lava tudo. Tropeçava eu também nas
gargalhadas dela, como daquela vez que estava a servir, longe de Lisboa, nuns
senhores que tinham terras, bomba de gasolina, uma farmácia e animais. Fazia de
tudo, aprendi lá muito. Havia até um rapaz que andava atrás de mim. Fui burra,
não o quis. Então eu levava a vianda aos porcos e nasceu um bacorinho. Todos os
dias lhe fazia festas e quando ele começou a comer, guardava-lhe tudo o que era
bom. O bicho já me conhecia, parecia gente. Mas fez-se gordo e eu já não podia
passear com ele na quinta.
Um
Domingo, fui à missa e a igreja tinha umas grandes escadas. Estava lá dentro e
ouviu-se um barulho que parecia um porco a grunhir. E era ele. Subiu aquilo
tudo e entrou, a ver de mim. Chegando a casa, a senhora e o senhor ralharam
muito. No Natal não o mataram, tanto lhes pedi. Morreu de velho, ainda comigo
lá.
Não
sou de padres, mas rezo todas as noites pela pessoa que me ensinou a escrever o
nome, o mê é que nunca aprendi, tem muitas voltas. Rezo pelo homem que me
vendia o leite fiado, pagava sempre tudo. Ainda hoje, quando vou pagar a luz, é
uma alegria. Gosto de pagar as coisas e de rezar por quem me fez bem e já lá
está. São alminhas.
Cheirava
a cera, a cantiga que cantava vezes sem conta. Já passei a roupa a ferro, já
passei o meu vestido, amanhã vou-me casar e o Manel é meu marido.
Ai
que os meinhos são para as senhoras. Os meinhos, aquilo que se vê. E dava
lustro debaixo das camas, zap, zap, já passei a roupa a ferro.
Isto
queria-se era com goma. Os bordados põe-se um turco molhado por baixo.
Dá-se-lhe goma, uma farinhazinha. Agora já não. Agora é só aspiradores e
esfregonas. Eu gostava era dos amarelos, esfregava-se muito bem, ficavam a
luzir, bonitos. E as escadas, com sabão amarelo, parecia gemas. Já passei o meu
vestido.
Na
minha terra não havia queijo. Mas eu vi uma rapariga a pôr aquilo no pão e pedi
à minha mãe. Fazia anos. Ó minha mãe, eu gostava de comer queijo. Ela era boa
mulher e o que é que havia de pensar. Ir à mata dos patrões e apanhar
cogumelos, a fazer que era queijo. Foi apanhada pelo capataz e tiraram-lhe a
féria. Ela ganhava à féria. Agora posso ver muito queijo que não lhe toco.
Amanhã vou-me casar.
Andava
sempre bêbado e eu apanhava todos os dias. Ia trabalhar negrinha de todo. O
pior era quando não tinha reacção. Que culpa tinha eu? Cerrava os punhos e
dava-me com eles nos olhos. Tu tens amantes, tens que eu sei. E vá de bater. Um
dia, escondi-me no meio das barracas. Era ali na Gago Coutinho, ao Relógio. E
ele encheu uma panela com água a ferver. Foi uma vizinha que acudiu.
O
meu sonho era vestir um vestido encarnado no dia do enterro dele. A minha filha
não deixou, que parecia mal. O Manel é meu marido.
Depois
de velha, dá-me para as excursões. Ainda ontem fui.
As
minhas perguntas, tantas e tantas vezes escusadas. E onde foi?
Ai,
isso não sei. Na camioneta é um fartote. Tudo a cantar e a comer, o chofer é
reinadio. Canto muito, para lá e para cá.
Nasceu-me
uma neta.
Outra
pergunta, tão escusada como as outras. E o nome?
O
nome, bem, o nome deve ser açoriano estrangeiro. Nem sei dizer aquilo.
O
meu pai ia para a cava, lá para onde fazem o vinho fino. E eu com outra
pergunta, ainda mais escusada, no Douro?
Pois,
aí. Vinha sempre muito magro. Contava que para levar a comida à boca,
arrancavam os aramezitos das vides e punham-nos nos ferros onde passava o
comboio. Ficavam a olhar e à espera. E o comboio esmagava aquilo, ficava como se
fosse uma colher.
Teria
aí uns onze anos. Estava numa casa grande, até tinha medo daquele corredor. A
minha tia era lá cozinheira. Eu despejava os bacios e engraxava sapatos. Um
dia, caí e esfolei os joelhos. À noite botei sangue. Julguei que era por ter
caído. Fui ter com a minha tia e contei-lhe. Ela levantou-se da cama, pregou-me
um estalo, olha, cala-te muito bem calada. Isso é a vergonha das mulheres. Pega
lá sabão e lava-te.
Ria-se
muito, por eu não me rir. Agora sabem tudo, já não têm os olhinhos fechados.
Ouço-a
ainda a dizer que o autocarro 56 passa na bombenca. Nunca mais deixei de chamar
assim à Fundação Calouste Gulbenkian.
Maria João Forte é socióloga
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