Comer com os olhos #6


  ©Patrícia Azevedo da Silva


Ontem, mesmo antes de carregar no play para assistir ao terceiro episódio de Life of Kylie no E! Entertainment (there I said BOOM no regrets) fiz assim um breve zapping e fui parar à Fox onde estava mesmo a começar o The Help, em português, As Serviçais. Guardei para Keep Up with Kylie mais tarde e decidi passar 2h40m numa trip catártica.

Só para dar aquela situada: o plot do filme é bastante simples (and yet): a personagem da Emma Stone, Skeeter, regressa a casa (uma comunidade do sul dos EUA) e encontra um daqueles ambientes bem racistas onde as empregadas podem cuidar dos filhos dos brancos (dar-lhes mimos, muitos, mas não bater, because “white people like to do their own spanking”) mas não podem usar as casas-de-banho dos patrões. Este foi o primeiro trigger do filme: a ideia de que as empregadas não podiam usar as casas-de-banho dos patrões, pelo medo do contagio, os fluídos misturados and whatnot, a vê-las a lambuzarem e beijarem as crianças, a cozinhar também!, numa gestão bastante bizarra do que é o “contágio” (Purity and Danger/Mary Douglas much?) .

O segundo trigger foi quando Aibileen, uma das empregadas responde a Skeeter “Ninguém no seu juízo perfeito vai querer falar consigo”, quando ela apresenta a sua ideia de reunir as histórias das “serviçais”. Imediatamente me lembrei de um projecto de pesquisa no qual, claramente, ainda penso, e que gostaria tanto de não abandonar, feito na época de um pré-doutoramento-já-a-pensar-na-tese, alguns anos antes deste filme, e que já tinha que ver com o alimento/comida mas que assentava sobre a figura da empregada doméstica (no Brasil). O que me interessava era a forma como actuavam, as empregadas, enquanto agitadoras e mediadoras de duas realidades tão distantes e de como serviam para as aproximar, também. O trabalho de campo tinha um grande faux pas que matava o projecto, que era apanhar estas empregadas “em casa”: na casa dos patrões, e o que me foi dito foi exactamente isso, “ninguém no seu juízo perfeito vai querer falar contigo” (pelo menos não neste contexto de poder). (Entretanto e já num momento de investigação no terreno encontrei o Bom Prato e fiquei rendida.) Uns dois anos mais tarde passou em Portugal uma novela chamada Empreguetes, tenho quase a certeza de que coincidiu com a criação da Lei Maria da Penha – mas não é certo – e com a revisão dos estatutos da empregada doméstica, assim, sempre no feminino; esta novela era incrível e eu assisti a tudo, o que foi um enorme fardo para mim pois odeio novelas, e tenho imensas notas desse tempo, porque apesar de ter abandonado aquele projecto sempre quis escrever à séria sobre aquilo tudo.

Nunca me esqueci de toda a bibliografia que consultei na altura para escrever este projecto, sobretudo num artigo incrível da Maria Cláudia Coelho (“Sobre agradecimentos e desagrados: trocas materiais, relações hierárquicas e sentimentos”, de 2001) (ah, sempre a troca/reciprocidade). Este artigo tenta avaliar a capacidade de “agência” das empregadas na troca de presentes, apenas para concluir que a dádiva das patroas às empregadas não apenas denuncia um desinteresse pelas preferências das empregadas como é também obrigatória, interessada, e unilateral, “não exigindo e, no limite, não admitindo reciprocidade (ao menos em termos estritamente materiais”; a retribuição que é esperada é emocional, e tem que ver com “a expressão de um sentimento que demarcaria a “posição permanente” da empregada em relação à patroa – ou seja, a sua servidão”. A única possibilidade de agência/resistência das empregadas surgiria expressa, então, não apenas através da recusa em aceitar os presentes, ou através da recusa em mostrar-se agradecida, mas também pela retribuição de um presente de baixo valor.

            Este detour está aqui só para fazer raccord com a ideia de servidão do filme (hence o “serviçais”). Quase todas as cenas são uma prova e um reminder desse nojo que é a escravidão, mesmo quando vem embrulhada com outros panos: a cena em que a recusa de um empréstimo de 75 dólares à sua empregada surge como um “favor” que Hilly, a patroa, está a fazer “porque Deus não faz caridade com os fortes”, e o que é que interessa se isso obrigará aquela mulher a escolher qual dos dois gémeos conseguirá enviar para a faculdade. Mas as histórias que hit me closer to home, que foram duas, tinham que ver com a forma como duas das empregadas foram arrancadas, quase literalmente, às casas e às meninas de quem cuidavam: Constantine, empregada da própria Skeeter, e Aibileen. Ambas na verdade foram expulsas em situação muito semelhante: as suas patroas quiseram impressionar as visitas que recebiam, e numa trip de demonstração de poder abandonaram-nas, obrigando-as assim a abandonar a filhagem que tinham criado. As duas cenas são muito fortes, e do ponto de vista emocional a resposta das duas meninas, Skeeter, jovem adulta, e Mae Mobley, menos de 5 anos, é quase igual: muita raiva e incompreensão. Mae Mobley fica à janela, quase sem acreditar que Aibileen está realmente a ir-se embora, claramente numa guilt trip que se irá tranformará no futuro uma guilt trap, depois dela lhe repetir o que lhe diz o filme inteiro para se sobrepor à negligência/abuso da sua mãe: “you is beautiful, you is kind, you is important”. Este foi o terceiro trigger e, claro, o mais forte. Naquele momento todo aquele sentimento que tinha atravessado comigo o filme todo ganhou um nome: Teresa.

            Quando eu era pequenina, a irmã adoptiva da minha mãe, a Teresa, tomava conta de mim. “Irmã adoptiva” será um pouco forte: a Teresa era uma menina que tinham deixado na porta da minha avó, aos 11 anos, para servir de empregada, e que a minha avó acolheu como filha. Era negra. Estava exactamente, age-wise, entre a minha mãe, mais velha, e o meu tio, mais novo. Foi criada com eles (acho que seria ambicioso dizer “como eles”, até porque nenhum deles foi na verdade criado como o outro) num clima de irmandade.  Quando vieram para Lisboa a Teresa veio junto, óbvio. E quando eu nasci, um mês depois de terem chegado a Teresa, que na altura já não estudava mas ainda não tinha trabalho, cuidava de mim. A Teresa foi a primeira e única pessoa que me esticou o cabelo. A Teresa passeava comigo e mimava-me muito muito e apesar de ter a certeza de que a história dela merecia um livro inteiro não posso ajudar aqui, porque quase só me lembro deste sentimento de muito amor quando falo/me lembro dela. Digo quase, porque o final da minha história com a Teresa foi o que ficou gravado na minha memória, e muito infelizmente depois disso não houve mais nenhum acontecimento que pudesse servir de closure.

            Já bastante depois de termos saído da casa-comuna onde nos abrigamos nos primeiros tempos a Teresa apareceu de surpresa um dia na nossa nova casa, casa-nuclear, para se despedir de mim. À vez cada um deles, mãe e pai, ia falar com ela. A casa era bastante pequena e lembro-me deles desaparecerem com ela, levavam-na para o quarto, e eu conseguia topar tão bem que alguma coisa estava muito mal. A minha avó chegou, depois o meu tio, eu só ouvia “ela não está bem” e tudo o que me lembro antes de a ver sair, de maca, tenho quase a certeza de que amarrada com aquelas correntes nojentas que colocam nas pessoas que estão em risco de se magoarem é o olhar dela a olhar para mim, as mãos dela na minha cara, umas frases quaisquer que acabavam em “....amor” e um grande, forte abraço. Depois foi-se embora e foi a minha primeira grande perda, e um grande sentimento de culpa tomou conta de mim durante muito tempo, porque achei que se ela não tivesse voltado atrás para se despedir, se tivesse partido simplesmente, se não fosse eu, talvez nada daquilo (lhe) tivesse acontecido.

            Sei que a minha família continuou a visitá-la mas lá em casa não se falava disso. A Teresa continuo a fazer parte da vida deles, mas não da minha (em parte porque foram meio pegos de surpresa e não queriam que voltasse a acontecer, para me proteger e não deixar que vivesse uma coisa daquelas outra vez, vai que). Depois do internamento, que acho que foi brevíssimo, só para avaliação, a Teresa saiu e construiu a sua vida incrível: trabalhou, casou, teve os seus próprios filhinhos. By the time que eu era suficientemente crescida para voltar a estar com ela “em segurança” era tarde demais: a Teresa tinha viajado para Cabo Verde e era lá que vivia. Eu nunca brinquei com os filhinhos da Teresa. Eu merecia continuar a fazer parte da história dela.

            Na sexta ou no sábado, já não me lembro bem, li dois artigos que falavam de um vídeo da Procter and Gamble chamado The Talk, a propósito desta guerra civil (e não tão só civil assim) que está a acontecer nos EUA. No início não quis assistir ao vídeo em parte porque 1. Depois das campanhas da Pepsi e da Heinken em modo SJW não me apetecia perder tempo a ver mais uma cena claramente organizada por um branco (o Marc Pritchard, responsável pela ad campaign, é um homem branco de meia idade) a tentar dizer as “coisas certas” que claramente não são nem para fazer eco na comunidade negra (farta de saber destas coisas e sobretudo farta que brancos tentem explica o que é ser negro numa sociedade racista) nem na comunidade branca (os brancos que pensam assim, bom, já sabem o que pensam; os outros não vão mudar de cabeça over this emotional mumbo-jumbo); 2. Porque até há relativamente pouco tempo a Procter and Gamble era uma daquelas companhias que estavam na minha no-no list porque faziam testes em animais e me obrigavam, em tempos remotos, a não trazer as Pringles Sour Cream que eu tanto amava do supermercado  - hoje em dia não gosto de Pringles, em boa hora, e ao que parece já não fazem testes em animais e até fazem um esforço valente para investir no desenvolvimento de alternativas aos testes em animais (não sei realmente se isto é verdade) apesar de continuarem, à semelhança de outras companhias, na lista negra da PETA porque vendem os seus produtos na China, onde é obrigatório testar os produtos em animais.

The talk, o vídeo, é tudo aquilo que eu pensava que ia ser, e também muito agressivo naquilo que demostra: uma série de pais, ao longo das várias décadas, a explicar aos filhos que eles podem conseguir tudo o que os outros (white people) conseguem, “you just have to work twice as hard to get there”. Ou uma mãe a perguntar à filha se ela sabe o que fazer quando (não se) for parada pela polícia, ela ri-se, “I’m an excelente driver”, apenas para ouvir “This is not about you getting a ticket. It’s about you coming home”. Ou outra mãe a comentar, “Where did you hear that? That is not a compliment”, quando a sua filhinha lhe diz “They said I was pretty for a black girl”. Há uns tempos vi um vídeo de uns pais, negros também, a tentarem explicar como era difícil viver com um filho adolescente, autista, agora que ele tinha tirado a carta: como lhe explicar que ele tinha que sair do carro quase a rastejar, quando fosse parado (again, quando, nunca se), e que nunc, poderia reagir de forma imprevisível a qualquer coisa que os polícias lhe fizessem. Eu, que choro de cada vez que tenho que explicar ao meu filho porque é que ele não pode ficar a brincar com a escavadora na areia de um menino qualquer que não está nem aí para aquele brinquedo mas que de repente se torna, o brinquedo, no seu tesouro quando o meu filho se aproxima, não consigo imaginar o que será viver em modo alerta permanente. E uma parte desta incompreensão poderá talvez vir de alguma culpa porque, ao contrário do que sempre sonhei quando olho para os meus primos, não há nada em mim que denuncie a minha negritude, os meus 1/8. Ouvir o meu pai, ouvir as histórias dele, partilhar tanta coisa e partilhar isto também, mas sempre com aquela sensação de falhanço de que posso sentir até onde posso sentir mas depois não posso mais, é só empatia.

Este final-de-semana a maior parte das pessoas deu conta da morte do Jerry Lewis; eu fiquei mais presa na morte do Dick Gregory (não é uma competição), politial activist and comedian, que disse “White is not a color, it’s an attitude.” Ao contrário de algumas crianças, como aquele menino que obrigou a mãe a cortar o seu cabelo como o melhor amigo, que era negro (ele era branco) para confundirem a professora, eu não sou color-blind. E não acho que seja uma coisa má. Pelo menos, ainda não.



Patricia Azevedo da Silva nasceu em 1977 naquele que é, sem dúvida, o ano mais punk do século XX (serpente de fogo). Trabalha sobre a dádiva e a ideia de reciprocidade a partir da óptica do amor (a sua tese de doutoramento, “Pão é Amor Entre Estranhos”, ainda por terminar, aborda a ideia do alimento enquanto linguagem&afecto, a partir de trabalho de campo realizado em São Paulo). Na sua tese de mestrado, “Para lá do prejuízo”, trabalhou os temas de género, colonialismo e performance a partir da análise de experiências de mulheres brasileiras a viver em Lisboa.
Trabalhou com quase todas as produtoras de cinema em Lisboa (nos anos 2000) e foi aí que descobriu a importância da repetição (no sentido de repetir obras). Também foi ganhando outras relações com outras ideias de teatro e, actualmente, tenta fazer o mesmo com a dança (e, ainda remotamente, com as artes plásticas).
Cresceu em Queluz, Monte Abraão, e a ideia de periferia e subúrbio está presente em tudo o que faz, pela via da marginalidade e pela forma encantada como aprecia pracetas. É mãe.


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