Aborrecimento, quase poesia
X: Visagem,
Voz
Não é sempre que
recebo meu rosto em casa.
Quando
vou à barbearia – isso acontece de seis em seis meses, no máximo – costumo
gracejar com o rapaz: “é preciso despistar os credores”. O tipo do dito que já
vem à boca velho, manquitola. Não importa.
Talvez não tenha
tanto prazer assim na sensação de coisa moribunda a me sair pela boca. Sei que
gosto mais do chiste do que do barbeiro que me costuma atender. Este não parece
absolutamente gostar de mim. Nem do que chega, nem do que vai.
Talvez esteja
passando por reais apertos de ordem financeira, talvez se veja acossado por
credores de fato. É uma hipótese cabível.
Com efeito,
pareço muito mais moço sem barba.
Ao
voltar para o edifício onde vivo, há que passar pelas costumeiras confusões na
portaria, ombrear com dignidade os comentários de admiração de funcionários e vizinhos.
No trabalho, a mesma coisa. O tempo todo velhos coxeando para fora de nossas
bocas, ganhando o passeio. Torce-se impiedosamente a palavra irreconhecível. Um que outro desavisado
no escritório pode mesmo chegar ao absurdo de afirmar que tenho o aspecto
melhor, que deveria ficar assim, o
rosto aberto, o queixo exposto, esmurrável.
Eminentemente
esmurrável.
Dentro
de uma quinzena voltamos à programação normal, costumo resmungar.
Não
sei se me ouviram, disse: resmungar. É
como falo, de hábito. Embrulhado, grave, algo exasperado, frequentemente
inaudível. Era uma voz inventada, a princípio, uma voz para chamar a velhice. Uma amarra, um
dispositivo.
Certo
dia correu um vento, ela ficou assim.
Agora
é com esta voz – ao que tudo indica, permanente – que me dirijo ao gênero
humano, é com esta voz que costumo dizer os meus entrevados, os meus velhos. E
é por velho que tomo todos à minha
volta, independentemente de idade.
-
Vamos lá, meu velho, é preciso despistar os credores.
Passei
muito tempo da minha vida chamando a velhice, cortejando a velhice. Queria uma situação que se desse com o cansaço que
sentia desde sempre. É por isso que digo amarra.
Eu procurava uma situação que amarrasse este
cansaço a algo, a algo demonstrável.
Não
uso as palavras assim, levianamente.
São,
bem sei, palavras velhas, anacronismos mais ou menos simpáticos. A barba longa
e desalinhada, o quepe de veludo que costumo meter à cabeça nas estações frias,
os olhos sempre estreitados pela luz ambiente, o leve tremor nos passos, a
perene expressão de quem vem de longe e contrariamente. Tudo isto me serve.
Tudo isto compõe uma maneira de estar no mundo inteiramente condizente com
minhas impressões do mundo.
Quando
começo a ouvir o chamado do rosto – isso acontece de nove em nove meses, mais
ou menos –, percebo-me mais enervado do que de costume. No fundo, no entanto, sei
que se trata apenas de um aborrecimento passageiro. Indispensável a ele,
toleravelmente aborrecido para mim. Vai para a categoria dos sacrifícios
menores. A minha parte neste trato que, de resto, nada tem de mefistofélico.
Por
uma quinzena, então, sou forçado a recrear um convidado intratável, a suportar
suas indiscrições, sua vulgaridade, seu absurdo hábito de estampar-se
indiscriminadamente sobre toda e qualquer superfície espelhada.
Já
ao espelho do barbeiro, enquanto meu rosto de eleição se desfaz em grandes
chumaços negros à passagem da máquina, começa a entortar os lábios num sorriso
malicioso.
-
Afinal, destampaste a garrafa, meu velho.
Ele
engole um bocado de ar grande demais, bocado que eu devo trabalhar, descer até os pulmões. Esmurra meu tórax
encovado como se fôramos Tarzan. Lança sem nenhuma mediação os olhos para o céu.
Quem sai crestado?
Adivinhem.
Talvez
seja mesmo o desejo de me tornar – nem que seja por um instante –
irreconhecível diante de mim mesmo o que me conduz anualmente à cadeira do
barbeiro. É uma hipótese cabível.
Há
sempre um momento intermédio, difícil de fixar, um instante em que meu rosto
ainda não chegou de todo.
Meu
rosto perde-se entre polos.
Meu rosto
conhece então a beleza de um corredor vazio. Nenhuma voz se faz ouvir, nem
velha, nem moça, nem provinda do poço do elevador. Minha boca, não existindo
ainda, é por isso mesmo gloriosa.
Ao
longo desta trégua, tenho a sensação de que meu leque de possibilidades tornou-se
praticamente infinito, que já não há limite ou divisão no que tange aquilo que
posso vir a me tornar.
Enxergo-me
então como que de cima, deslizando uma engenhoca barulhenta sobre o castigado
rosto de um sujeito de mais ou menos quarenta anos de idade, arrancando sua
cara aos chumaços, limpando seu maxilar com navalha de realismo irretocável, devolvendo
ao mundo mais um pobre diabo.
"Ismar Tirelli Neto é poeta, ficcionista, roteirista e tradutor. Nasceu em 1985, no Rio de Janeiro. Vive e trabalha atualmente em Curitiba. Lançou os seguintes livros: synchronoscopio, Ramerrão e Os
Ilhados".
Ilhados".
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