Aborrecimento, quase poesia
IX: Sinistro
Ocorrido em Agosto
Entram, matam-me.
Na tevê, estão
levando o Quo Vadis.
Curiosos os rumos
tomados pelas coisas, quando remetidas a si próprias.
Eu duvidava.
Quando entraram, quando
entraram a matar-me, era com isto que eu andava às voltas. Algumas dúvidas. Eu
duvidava.
Pensava ter ouvido
de uma velha amiga que seu filme favorito em criança era este Quo Vadis.
Faltavam-me as
provas, no entanto.
Eu distribuía esta
colocação entre minhas amigas, testava.
Também eu fui
improvável em criança.
Também eu busquei
me vincular, mais tarde, a tantos outros que haviam sido improváveis em
criança.
Deborah Kerr atada
a um tronco no centro da Arena. Flores atadas à cabeleira ruiva, ao coif improvável.
Bom, isto tudo
acabou.
Eis um grande
arrependimento que levo comigo para onde quer que me estejam levando. Não
reconheço flores, árvores. O mesmo para tecidos, cores, estilos arquitetônicos,
materiais de construção.
Gostaria de ter
sido mais exato.
Gostaria de ter
lido, relido, memorizado todos os livros com que abarrotei as reduzidas
dimensões desta casa.
Terei sido ao
menos vibrátil em minha infinita
ignorância?
Agora conhecerei
sem esforço. Conhecerei, possivelmente, uma intelecção imediata, uma
assimilação plena e orgânica das coisas. O que sempre foi meu desejo mais
ardente, falando verdade: ter nascido já sabendo.
Isto e dinheiro.
Ter nascido sem a
hesitação que tanto apregoo hoje em dia como grandeza moral.
Apregoava.
Minha casa era
fria e úmida.
Com trinta passos,
fazia-se o torno dela inteira, quiçá mais de uma vez.
De exígua, não
havia espaço para as assombrações.
Não cabiam sequer
os cheiros.
Os meus, por
exemplo.
Tinham
de
desprender-se, contrariando meus mais encarniçados esforços.
Era frequente,
também, sonhar com tanto volume que ia despertar no varandim, na rua, no
exterior.
Era isto, em suma,
a minha casa. Este desacordo com o exterior. Sempre um pouco mais fria, um
pouco mais úmida que o próprio inverno.
Nunca fui capaz de
temperar de modo muito realista a comunicação entre a casa e o exterior.
Nunca me mostrei à
altura do bolor, dos entupimentos.
Com os anos, no
entanto, aprendi a amá-la.
Fiz mau uso de
minhas prerrogativas humanas, nomeei-a.
Como todo aquele
que ama, sim, fiz mau uso de minhas prerrogativas.
Aprendi a ignorar
as freiras com as quais vivia esbarrando na rua. Aprendi a ignorar os ônibus cheios
de turistas.
Pensei que me
integrava ao folclore do bairro.
Agora estou
pensando com o sangue que empoça à
volta da cabeça. É uma maneira nova de pensar, reconheço.
É uma lira nova.
Mas não é ainda o
período límpido que busquei por tanto tempo.
Curiosos os rumos
que tomamos nesta busca pelo período límpido.
Com o sangue que
me sai da bordoada na cabeça, rememoro um passeio na cidade de meu pai.
Longa tarde
caminhando a esmo pelo atulhado centro comercial de uma seca província. Uma
tarde escorchante.
A seca surpresa ao
deparar uma rouparia situada em esquina bastante movimentada.
Uma loja chamada Quo Vadis.
A surpresa diante
daquelas palavras, a placa enorme, enormemente improvável, a pergunta que
pairava – indolência e imponência – sobre o imparável vaivém.
“Volto para Roma
para ser crucificado”, respondo, muito depois.
Será que é para
esta imagem que estou sendo transportado?
Oh, não.
Por Deus, espero
que não.
"Ismar Tirelli Neto é poeta, ficcionista, roteirista e tradutor. Nasceu em 1985, no Rio de Janeiro. Vive e trabalha atualmente em Curitiba. Lançou os seguintes livros: synchronoscopio, Ramerrão e Os
Ilhados".
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