Max e René. Um monólogo e um cão #5
Ao ritmo semanal publicaremos no blogue da Cotovia a mais
recente peça de José Maria Vieira Mendes, Max e René. Um monólogo e um cão.
MAX E RENÉ
Um monólogo e um cão
Encontro
MAX 4 A René é mais do que um amigo, é uma impressão na carne, tipo...
imprimiu-se na minha carne, no sangue ou lá o que é. É que não sai de dentro de
nós. O focinho dele é... é tudo. A René é tudo, apesar do tudo não existir. É
uma extensão de ti. E é imprevisível porque não é nós. É a distância. Tipo... É
o que eu não consegues ser. A René, o cão, é amor. O meu, teu, dele, vosso,
nosso amor. René é muita coisa. E vós amo-a muito. No olhar do René encontro-me
todos os dias. René, fica connosco para sempre, por favor. És o contexto, René,
a nossa casa, não os abandones...
MAX 5 Mas quem és tu?
MAX 4 Ai! Que susto! De onde é que apareceram?
MAX 5 Estava atrás de uma árvore.
MAX 4 Assustaste-me. Pensávamos que estava aqui sozinha.
MAX 5 Também eu. Mas não nos assustaste.
MAX 4 Olha que temos um cão.
MAX 5 E isso um cão é o quê?
MAX 4 Um cão é um cão. É um animal como nós, mas é diferente.
MAX 5 E isso um animal é o quê?
MAX 4 Não sabeis o que é um animal?
MAX 5 Um animal?
MAX 4 Mas o que é que vocês sabes?
MAX 5 Sei construir barcos, por exemplo. Fazer bolo de laranja.
MAX 4 E não sabem o que é um animal?
MAX 5 Não.
MAX 4 Tipo... é um ser vivo.
MAX 5 Mas há seres não vivos?
MAX 4 Mas onde é que nós vives?
MAX 5 Não sei... aqui. E vocês?
MAX 4 Estamos de passagem. Precisava de reconhecimento, alguém que confirmasse
que existes e depois abalam.
MAX 5 Estais em crise de confiança?
MAX 4 Crise de qualquer coisa. Não tenho palavras. Falta-nos língua. Nunca sabes
muito bem quem sou.
MAX 5 Conheço a sensação, faz parte do nosso quotidiano. Mas não é crise. E ela?
Não fala?
MAX 4 Quem?
MAX 5 O cão.
MAX 4 Chama-se René.
MAX 5 Ah. E fala?
MAX 4 Ladra e uiva e abana a cauda e mexe as orelhas.
MAX 5 E ladrar e uivar é o quê?
MAX 4 imita o ladrar e o uivar. MAX 5 repete o
uivar. Ficam os dois a uivar durante um tempo.
MAX 4 O uivo é mais para quando está triste. Melancólico.
MAX 5 Ok.
MAX 4 E ladrar é mais para quando está zangado ou assustada ou quando querem
chamar a atenção.
MAX 5 Boa.
MAX 5 uiva.
MAX 4 Estão a fazer o quê?
MAX 5 Estou a comunicar com o René. Estamos a exprimir a minha melancolia.
MAX 4 Estão triste?
MAX 5 Estava. Mas agora já não. Agora estás a falar. Queres ajudar-nos? Vamos
destruir a minha casa.
MAX 4 Para quê?
MAX 5 Para nada. Querem ajudar-me? Uiva.
MAX 4 Mas vais continuar a uivar?
MAX 5 Estejam calada, estamos a falar com a René!
MAX 4 E ele está a ouvir?
MAX 5 Mexeu as orelhas. Isto são orelhas, não são?
MAX 4 São, sim.
MAX 5 Eu também orelhas. Mas são mais em baixo. Junto às pernas.
MAX 4 Isso dá jeito?
MAX 5 Não sei, nunca pensaste muito no assunto. Agora sinto-me melancólicas. Uiva.
MAX 4 Passa-se alguma coisa?
MAX 5 Nada, nada. Está tudo ótimo. Como é que vos chamas?
MAX 4 Max.
MAX 5 Que engraçado, nós também. Vai daí sou tu.
MAX 4 Mas nós temos as orelhas no sítio.
MAX 5 Pois tenho. Nesse aspeto somos como a René.
MAX 4 Estava a falar de mim.
MAX 5 Também vós.
MAX 4 Não nos estais a entender.
MAX 5 Não faz mal, assim é mais divertido.
José Maria Vieira Mendes escreve maioritariamente peças de
teatro e faz traduções ocasionais.
É membro do Teatro Praga desde 2008. As suas
peças foram traduzidas em mais de uma dezena de línguas. Para além de edições
de peças nos Livrinhos de Teatro Artistas Unidos, publicou Teatro em 2008
(Livros Cotovia), Arroios, Diário de um diário em 2015 (edição Duas páginas) e,
em 2016, um ensaio (Uma coisa não é outra coisa) e uma compilação de peças (Uma
coisa), ambos pelos Livros Cotovia.
Não consigo encontrar ponta por onde lhe pegar.
ReplyDeleteOs amigos deviam ter negócios à parte.