Aborrecimento, quase poesia
VIII. Bem-vindo de volta
A
verdade é que sempre gostei muito de estórias deste tipo.
Estórias de pessoas que começam de
novo. Estórias de pessoas que vão a zero, vão partejar a si próprias em
outro sítio, dão cabo de si para ressurgir – outro nome, outra mitologia, outra
cronologia – muito tempo depois, em ponto improvável do mapa.
A verdade é que sempre gostei de
estórias de pessoas que vão nascer longe dos pais. Longe de sua nascença.
Revejo-me tratando da transferência
no escritório, respondendo – jocosamente, é claro – aos amigos que me
perguntavam o que raios pretendia fazer lá que já era tempo de começar a
aprender a morrer.
É possível que eu não saiba muito
bem a diferença entre nascer e morrer.
Revejo-me circulando anúncios de
imóveis numa panificadora de esquina, os pés latejando de intermináveis
caminhadas, feliz.
Vejo-me assinando livros de visitas
com cognomes absurdos, como Bosco Fosco.
Revejo-me
pensando em C..., antes da mudança. Revejo-me figurando C... como se se
tratasse de Moscou, como se eu fosse uma das três irmãs de Tchekov.
Neste ponto, pelo menos, a razão
esteve comigo. Li em algum lugar que o sol dá as caras nesta cidade com tanta
parcimônia quanto em Moscou.
É claro, escrevê-lo num dia gloriosamente
soalheiro – e isto em pleno inverno – como o de hoje pode parecer um
contrassenso. Não é. Aprendemos, com o inevitável enraizamento, a não nos
habituar. Lenta e inequivocamente. Sabemos do imenso toldo cinza de setembro, a
verdade que desce sobre nós.
Se não setembro, outubro. Se não
outubro, novembro.
Pareceu-me, então, ponto improvável
do mapa. Um recanto improvável, improvavelmente pacato, suficientemente falto
de acontecimentos para que acontecesse alguém. Ao sul de um mundo em
condição de fim.
Levei poucos meses para descobrir
que o problema de C... era justamente o ser por demais provável.
Levei poucos meses para descobrir
que em C... o fim já havia chegado.
É claro, de quando em quando depara-se
algum café barateiro com mesas do lado de fora, algum desconhecido nos sorri no
ponto de ônibus sem malícia verificável.
Mas tudo isto tem lugar num fim.
É difícil explicar. Levarei muito
tempo tentando explicar. Penso que há tempos não faço outra coisa.
Aqui temos, por vezes, a nítida impressão
de que o mundo já acabou. Desconfiamos que a moça que pôs os óculos de
armação vermelha para enxergar melhor o preço dos saponáceos no supermercado
esteja, na realidade, morta. Que a pálida adolescente que nos pergunta se
passaremos as compras no débito ou no crédito – lábios recurvos, moletom em que
se lê a frase All I do is win – esteja, na realidade, morta. Que o tipo
leitoso da livraria na frente de casa, com sua inestimável coleção de antigos
postais da cidade, esteja, na realidade, morto.
É possível que eu não saiba muito
bem a diferença entre nascer e morrer.
A mim me surpreende imenso que as
pessoas continuem falando de C... como se ela de fato existisse.
C... é provável como um pai.
Talvez as mães sejam ainda mais
prováveis que os pais.
Bem vistas as coisas, existem no
mundo pais imensamente improváveis.
Mas C... é provável como um pai.
Aqui, onde fantasiei em algum
momento reescrever minha circunstância, dar-lhe certo lustro, certo polimento,
a vida transcorre como que sob a mão perenemente espalmada de um vetusto paterfamilias:
pouca imaginativa, amante dos protocolos, descrente da confusão humana,
obstinado em construir o reino dos céus com retroescavadeiras operadas por
imigrantes mantidos em situação de semiescravidão.
Aqui, onde fantasiei em algum
momento colidir com minha própria voz.
Aqui, onde ela se tornou erma, cava,
e nada de muito preciso veio tomar o seu lugar.
Sempre gostei de personagens que se
assenhoram de outros, existentes ou não. Personagens que abocanham outros ou
que são por outrem abocanhados. Sempre gostei de desidentificações, imposturas,
possessões, qualquer aclaração de como é vácuo e atacável tudo quanto sustenta
nossos monumentos a nós mesmos.
Sim, sempre me senti
irresistivelmente atraído a este tipo de narrativa. A ponto de acreditar, por
vezes, que a minha própria estória se inscreve nesta categoria.
Não, não é bem o caso.
"Ismar Tirelli Neto é poeta,
ficcionista, roteirista e tradutor. Nasceu em 1985, no Rio de Janeiro. Vive e
trabalha atualmente em Curitiba. Lançou os seguintes livros: synchronoscopio, Ramerrão e Os
Ilhados".
Ilhados".
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