Aborrecimento, quase poesia
VII. Criaturas
Fossoriais
Minha
mãe, ainda viva, quer ofertar-me uns limões.
Venta por entre os cachorros de um
canto a outro da cozinha, atrapalha-se com o dispensário de sacos plásticos.
Digo-lhe que não há necessidade.
Quando lhe digo que não há necessidade,
minha voz surge estranha, acortinada.
Minha mãe, ainda viva, diz que
descobriu um canal de televisão que dá, ao longo do dia, imagens do histórico
calçadão da Rua XV.
A mesma imagem, em verdade. Mudam
apenas as pessoas, as horas do dia, a iluminação.
Ela diz que nunca provou limões como
aqueles, que são diferentes de todos os limões que já viu, que os tem usado
quase sempre para temperar o macarrão, que nunca provou limões como aqueles.
Minha avó já não ingeria sólidos.
Passou os últimos anos de sua vida a babar sobre a camisola uma concocção de
aspecto horripilante, a mesma sopa aguada de feijão com macarrão por quase uma
década.
Mudavam apenas as horas do dia, a
iluminação.
Não havia pressa. Não, nenhuma
pressa de morrer.
Verifico as horas no celular, digo-lhe
que não há necessidade.
Por favor. Por favor, pare.
Suas cores primárias. Vejo como se
espalham.
Ela dava berros na portaria, a troco
de nada, berros tão potentes que eram perfeitamente audíveis no quarto piso.
Meu avô, outro cretino, costumava
dizer, “Há vinte anos ela ameaça se jogar da janela, até agora nunca passou do
segundo andar”.
Dou um passeio cinzento como a
mente, como a marmita que vou buscar quase todos os dias no restaurante
Varandas, a uns cem passos do edifício onde vivo.
Mas onde você tem comido?,
ela pergunta, venenosíssima, ao vasculhar minha geladeira.
Habituei-me a chegar ao fim do
horário do almoço, entre duas e três da tarde.
Habituei-me a regrar a fome até duas
ou três da tarde.
Ainda não me habituei a ter os meus
mortos.
Já não há quase comensal no
estabelecimento, preparam-me uma refeição tão lauta que com frequência dá
também para a janta, o churrasqueiro tem sempre uma má notícia para dar.
Também a ele me habituei, penso que
me habituei.
Quando soube que eu vinha do Rio de
Janeiro, de imediato falou-me de um amigo seu que vivia lá e que se havia
suicidado recentemente.
Um tipo grande de avental, o rosto
de um branco ceroso com manchas vermelhas, a mexer com facões e espetos por
trás de um balcão. Conta, inexpressivo, de um amigo carioca que suicidou-se
recentemente, devido a uma sucessão de infelicidades conjugais.
“Morava na Glória”.
“Sei bem”.
Não sei o que há com minha cara, mas
inspiro confidências deste gênero de todo tipo de gente.
É bom que se sintam tão confortáveis
na minha presença.
É um pouco cansativo.
Por vezes, permaneço na fome sem
realmente me aperceber disto até um pouco depois das três. Dou-me conta
do adiantado da hora, como os cem passos que me apartam do Varandas com pressa
inabitual. É tempo de ver a porta de aço correr.
Procuro outro restaurante.
A palavra fossorial é achado
recente. Impossível ouvi-la sem pensar na minha mãe, em mim. É o que
somos, afinal. Criaturas fossoriais.
Para ver o movimento no calçadão da
Rua XV, o qual já atravessei tantas vezes em quefazeres pelo centro, a mãe põe
a mesma trágica antiface que usaria para assistir a um episódio de Cops.
Costumava
ser seu seriado predileto. Cops. A bem da verdade, passava os
dias assistindo a enlatados americanos numa espécie de transe malévolo.
Trancava-se no quarto, sempre
fungando alto, sempre com aspecto ofendido. Por qualquer coisa era aquele mesmo
bater de portas, um par de grosserias e depois a televisão acionada no último
volume.
Por qualquer coisa, dava uns berros
que perturbavam todos os cães da vizinhança.
Digo-lhe que não há necessidade, que
tenho um pouco de pressa.
Não me ouve. Os cachorros – agora
são quatro – se esgoelam por cima dela.
Ela diz que não está aqui para falar
de despesas.
Ela diz
que a aeromoça a tratou com muita grosseria.
Ela diz que a senhora idosa que está
comendo sozinha na mesa ao lado tem cara de megera. Peço-lhe que fale um
pouco mais baixo. Ela diz: “mas não é você quem vive dizendo que nem todo velho
é digno de piedade?”.
Uma criatura indefensável, a avó. Um
verdadeiro monstro. E como gritava.
Quando eu era pequeno, lembro-me,
exprimia-se até com alguma suavidade. Não era uma voz subserviente ou acanhada.
Mas era suave.
Ela diz que o professor de canto com
o qual há pouco fez uma aula experimental a tratou com muita grosseria.
Ela surge acortinada, baixa,
intoleravelmente severa. Pare, por favor, pare, digo-lhe. Pare. Veja no que
estamos nos tornando. Veja no que estamos nos tornando. Minha mãe se esgoela por
cima da praça, por cima do disco, por cima dos tiros na televisão, por cima dos
latidos.
Ontem dormi por cima de um filme. Nele,
uma moça conversava de maneira muito civilizada com um ex-amante. Depois de
nossa separação, ela dizia, fui para a capital e lá passei quatro anos, dos
quais não me lembro de nada.
Com o hálito desabado das manhãs, beijo
o menino à porta de casa, desejo-lhe um bom dia no escritório. Transporto-me momentaneamente
para uma prazenteira fantasia de felicidade doméstica.
Fica pouco,
o homem projetivo.
Termino o café sozinho.
O autor desta coluna chama-se Ismar Tirelli Neto.
"Ismar Tirelli Neto é poeta, ficcionista, roteirista e tradutor. Nasceu em 1985, no Rio de Janeiro. Vive e trabalha atualmente em Curitiba. Lançou os seguintes livros: synchronoscopio, Ramerrão e Os Ilhados".
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