Aborrecimento, quase poesia
VI:
Autorretratos Sumários
Se quiserem fazer uma imagem exata
de como passo os meus dias, deverão antes de mais figurar um par de mãos
torcidas sobre a guarda metálica de uma minúscula varanda.
Umas mãos que entornam de mangas
grossas, vermelhas, que entornam de janelas, que entornam de cortinas bastante
finas, algo encardidas, cuja cor original não saberia precisar.
Gostaria de ficar o maior tempo
possível neste não saber precisar muito bem.
Desentortando um pouco as coisas,
umas mãos que entornam.
(O aparelho vibrou, anunciando que
dentro de três minutos o motorista William Wilson estaria à porta do
edifício. Despedi-me de meus amigos, tomei o elevador, cruzei o jardinete a
passos surpreendentemente decididos. Pensava comigo mesmo se aquilo seria o
início ou o fim da minha desgraça).
Deverão imaginar estas mãos
entrelaçadas, os dedos entrelaçados, enformando novelo solene.
Não deverão imaginar que pende do
novelo um incensório. Não deverão imaginar que dele pende uma coleira, não
havendo, ao extremo da coleira, nenhum cão, nenhum canário, nenhuma imagem de
fidelidade inabalável.
Deverão imaginar um sujeito a
imaginar uma única gota de sangue finalmente posta em liberdade.
Deverão imaginar um gesto, uma
postura que prefacie anúncios volumosos. Ou então certa maneira de debruçar-se
sobre os eventos, por mais insignificantes que sejam, que é como se ele
estivesse sempre à boca de uma grande articulação, de um estalo, do encontrão
com uma memória de há muito perseguida.
Deverão imaginar esta iminência como
uma espécie de constante, uma condição.
Deverão imaginar um tipo a chafurdar,
ainda que discretamente, em gestos e posturas. E portanto deverão
imaginar gestos e posturas como poças, como pequenos charcos de profundidade
insuspeitada.
Deverão ser capazes de ler, na
atitude das pequenas mãos, na postura algo cerimoniosa, o anúncio sempre
prestes a ser feito, mas que nunca chega propriamente a articular-se, qual
seja:
a perda do fio da meada.
(Vi ontem na rua um sujeito mudar de
ideia. Uma bela visão, uma bela visão. O homem vinha descendo a rua na minha
direção, deteve-se de repente à sombra, firmou o olhar na distância e deu
meia-volta. Sim, foi positivamente de tirar o fôlego. Soube, no instante em que
o homem dobrou a esquina pela qual há pouco havia surgido, que aquela imagem
duraria um bocado, que sua simplicidade não era absolutamente confiável).
Deverão imaginar o contato destas
mãos com a poeira fuliginosa que há tempos vem se depositando sobre a guarda da
varanda.
E deverão ter presente a palavra mediania,
sua profundidade (insuspeitada), o desmaiado de sua cor, como sempre nos soa
como que pronunciada de muito longe.
A palavra engolindo grandes
distâncias, volatilizando-se, vindo cair em minúsculas partículas sobre a guarda
metálica de uma minúscula varanda.
Dela, vê-se uma espécie de beco onde
pequenos grupos de jovens saídos de uma escola nas imediações vêm prosear e
queimar uns charros nos grandes bolsões de sol de inverno.
Este tipo de tempo que torna as
narinas vibráteis, como se o ar – iluminado, frio – nos entrasse com cerdas
metálicas.
É bem verdade que este inverno nos
tem presenteado com dias absolutamente estupendos. É mesmo difícil saber o
que fazer deles.
Observo os jovens no beco por longo
tempo e com infinita ternura.
Meu televisor não funciona direito.
Agora deverão imaginar qualquer
outra coisa, para fazer com que esta figura tome pés no mundo. Sim, qualquer
outra coisa; uma jovem democracia terceiro-mundista ou um bingo clandestino, um
açougue ou uma infância cercada de memorabilia militar, uma grande loja
de roupas chamada Quo Vadis ou...
(No
início, eu sabia perfeitamente para onde estava indo. Agora já não tenho tanta
certeza).
O autor desta coluna chama-se Ismar Tirelli Neto.
"Ismar Tirelli Neto é poeta, ficcionista, roteirista e tradutor. Nasceu em 1985, no Rio de Janeiro. Vive e trabalha atualmente em Curitiba. Lançou os seguintes livros: synchronoscopio, Ramerrão e Os Ilhados".
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