Aborrecimento, quase poesia
V. Retratos
Sumários
para
o Thiago
O tempo, diz o amigo, não está para
investimentos incautos.
Já não se sabe muito bem que função
cumprem as estatísticas. Se fixam, se deslocam.
Tomar o pulso aos dias. Há falta ou
demasia de Brechts.
Surgem tanques também nos versos do
rapaz que me tem frequentado nos últimos meses.
Acordamos cedo, ele se veste, vejo-o
penteando a barba pela porta entreaberta do exíguo banheiro. Pego de um cabo de
vassoura para encostar no mundo. De longe, verifico se houve novas explosões,
notas de passamento.
Sentado ao meio-fio, ele comenta que
as vendas no Dia dos Namorados foram tão boas que o estoque de papel de seda da
loja acabou antes de encerrar-se o expediente. Freguesia terna e aflita. A
pressa destas rosas que passam acaba por tiranizar a visão.
A marcha de umas quantas rosas,
findo o dia laboral. Um contingente de rosas, vê? Um contingente de rosas.
É natural que ajam desta maneira,
avento. Buscamos todos reanimar alguns símbolos que já vão, para mal ou para
bem, pela hora da morte; decerto nos encontramos já à boca de um retorno
triunfal da mais autoritária beleza – uma ideia de beleza que acabará por
colocar em tudo templos, colunatas, varandins de mármore.
Decerto estamos perigosamente
próximos de uma nova grandiosidade. De um novo oco portentoso. De uma nova
petrificação.
Nos mostradores, selecionam-se os
exemplares mais vivos, menos ambivalentes, de tudo. As rosas devem sangrar.
Ainda que sejam chaveiros ou postais. Deste sangue, exige-se que corresponda, e
com absoluta estreiteza. Que não haja nenhuma destrinça entre o objeto e aquilo
que ele pretende comunicar.
O que estamos tentando comunicar?
Manifesta-se neles um repentino
desejo de clareza, um novo apreço pelos objetos totalmente declarativos. Sim, avento,
é natural que se aja assim. Que olhem agora para suas intermináveis casas, suas
intermináveis famílias, e pensem, de si para si: “Isto é o meu reino e tudo significa”.
Uma colunata de filhos. Todos
imóveis, marmóreos sob o sol de inverno. A imagem e a semelhança.
Estes senhores não estão tão
habituados ao medo.
E quando o meu amigo fala que o
tempo não está para investimentos incautos, a observação perde o que tinha de
circunstante, ganha uma generalidade difusa que me faz pensar que já atravessei
esta praça antes, sim, algumas vezes, sozinho ou dependurado em amigos, que já
fui um missivista fiel e regrado, que em todos os escritórios pelos quais
passei as pessoas me falavam com a voz das ruas, com as suas possibilidades.
Sentado ao meio-fio, ele conta da
recente onda de demissões que se abateu sobre a loja, uma brusca reformulação
no quadro de funcionários. Está surpreso diante de sua própria tranquilidade. O
maior número de baixas deu-se nos altos escalões. Faz questão de convidar uma
das atendentes com menos tempo de casa para almoçar, no intuito talvez de
serená-la.
Sim, o medo colocará suas grandezas.
Não tenho mais dúvidas quanto a isso. O medo de que tudo se vá com um whimper.
O medo de que tudo se vá com um bang.
Olha-se à volta. Não sei se um dia
perderemos o hábito de andar à cata de ancoradouros, visuais ou de qualquer
outro tipo. Não é notável a violência com que dizemos hoje em dia praça ou
rosa? Como nossas vozes escapam alteadas, estridentes?
Como,
entre nós e eles, já não há quase diferença tonal?
O autor desta coluna chama-se Ismar Tirelli Neto.
"Ismar Tirelli Neto é poeta, ficcionista, roteirista e tradutor. Nasceu em 1985, no Rio de Janeiro. Vive e trabalha atualmente em Curitiba. Lançou os seguintes livros: synchronoscopio, Ramerrão e Os Ilhados".
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