Aborrecimento, quase poesia
IV:
Calçados
Somos calçados. Calçados contornamos
os corpos. Calçados contornamos a caiação das faces. Calçados contornamos os
cães descarnados. Calçados contornamos clãs, calçados contornamos certo afã
dinástico. Calçados contornamos casarões, câmaras de tortura, cameratas
barrocas. Calçados contornamos cornijas, calhas que gotejam, síncopes nas
sombrinhas. Calçados contornamos colônias e capitanias.
*
“Eu não sou a guerra que vêm”.
Colocamos-lhe este pensamento na cabeça à guisa de consolação. Estendemo-lo sob
seu itinerário do dia. Pisando melhor. Amortecido. Aproveitamos para malear um
pouco o pescoço; girar o crânio para cá, para lá.
Entrevamo-lo numa frincha entre as
nuvens, uma claridade circular. Entrevamo-lo na palavra escotilha. Na
palavra olho-de-boi.
Desviamos uma iluminação.
O sol apanha o cinza, cobre-se. A
cidade a dar voltas. Mas é tão grande e tão lenta que mal se faz notar.
Deus a proteja.
“Não, eu não sou a guerra que vêm”.
Colocamos-lhe ruas tranquilas,
vocábulos de boa hora, larga margem para rubricar. As contas, em sua grande
maioria, pagas. Relações amistosas com o proprietário do apartamento, com quem
costuma, com certa periodicidade, trocar endereços de antiquários e livrarias.
Pusemos o corpo em marcha – não apenas o seu, não apenas o seu pequeno,
precário corpo, mas o próprio corpo do bairro, dos dias, das horas. A tudo
evidenciamos em pleno funcionamento. Cobrimos com C... as depressões
metafísicas, as panes enunciativas. Fizemos o que se encontrava a nosso alcance
para desatravancar este horroroso pátio cinzento entre manhã e noite.
Desligamos o televisor. Iluminamos a garçonete, a qual não esquecemos de traçar
em rosa quartzo, de modo que acionasse o rádio em volume discreto, numa destas
estações inofensivas que levam apenas soft rock dos anos 1970.
Carpenters, Carole King, America. I've
been to the desert on a horse with no name, it felt good to be out of the rain.
Que mais querem?
Estes favores, passarão sempre em
branca nuvem? “Cara de outono da porra”, disse-lhe um amigo quando passaram por
um parque espetado de árvores nuas. Não há nevoeiro, e ele insiste: dizer o
nevoeiro, dizer uma condensação, enunciar o esparso com concentração
implacável.
Colocamos diante de si a certeza de
que, pouco e pouco, reaprende a falar, reaprende a escrever, reaprende a
caminhar.
Memórias? Não lhe arrojamos nenhuma
específica.
“Não sou um assassinato por honra.
Não sou um atentado”.
Colocamos na enumeração também uma
piscina vazia – um elemento como qualquer outro, sem demasiada importância –
mas é para lá que ele gravita, infalivelmente, gozando da mais perfeita
incompreensão. Procuramos, mais uma vez, abrandar a musculatura do pescoço,
recordamos-lhe um andar de força; tentamos torcê-lo ao de leve na
direção de algum outro frequentador do café.
People. People who need people.
O tipo ao telefone ali no canto, o
tipo de camisa azul, calças pretas, cabelos cacheados, do que estará falando?
Ele atenta, afinal, mas para enunciá-lo socorrem-lhe apenas palavras para
uma piscina vazia.
Ele se abeira.
Tentamos trazê-lo de volta.
Não, está velando, de volta à
Rodoviária da cidade onde nasceu, imaginando bombardeios, como se fosse preciso
imaginá-los, fixa-se na grita entre labaredas e escombros, está preso por uma
despedida. A quê?
Está ouvindo, multiplicado pelos
ladrilhos brancos, o grito que ressoava do vídeo: Parem a cavalaria! Parem a
cavalaria!
O tipo
largou a papelada que estudava, gravíssimo, para atender a outro telefonema.
Acaba de perguntar a alguém: “E aí, como vai a vida”? É para o costado oposto
da pergunta, onde esboçam-se todos os poemas ainda por cometer, que devemos
encaminhá-lo.
*
Memória? Ocupação? Pertences pessoais?
Não, nada.
Por ora, apenas um paletó surrado
sobre uma coçadíssima camisa vermelha, e esta eterna incerteza respeitante aos
materiais. Diga-se o mesmo dos olhos, constantemente semicerrados sob a
cabeleira seca, inconquistada. A respiração morosa, a voz imersa no coro da
cidade, o corpo que não para de produzir bojos. Barba e bigode revestindo
alguns vulcões adormecidos. A misericórdia de um nariz assim,
nem-fede-nem-cheira.
E ademais, aberto, revoltantemente aberto, ladrilhado de
alto a baixo. Sem conteúdos. Um espaço onde as vozes reverberam, cada vez mais
rombudas, sem nada que as dilua.
O autor desta coluna chama-se Ismar Tirelli Neto.
"Ismar Tirelli Neto é poeta, ficcionista, roteirista e tradutor. Nasceu em 1985, no Rio de Janeiro. Vive e trabalha atualmente em Curitiba. Lançou os seguintes livros: synchronoscopio, Ramerrão e Os Ilhados".
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