Comer com os Olhos #2
Esta semana circularam várias notícias sobre o Brasil, não muito boas. Uma
delas, sobre um raid policial feito na Crackolândia, li-a ontem mesmo antes de
dormir. Foi uma escolha bastante estúpida, a de ler aquela notícia, porque como
é óbvio não consegui dormir (consegui, mas demorou bastante).
“Crackolândia” é uma palavra inventada (como todas as palavras, acho eu, ou
não) para designar aquilo que já lá está: um lugar na cidade conhecido pelo
tráfico e consumo de crack. Só conheço a de São Paulo, mas acho que deve haver
em todos os lugares onde o consumo de crack existe e é um problema.
Ninguém me preparou, nem poderia, para aquela armadilha (digo “armadilha” porque
não foi intencional) que foi a primeira vez que estive na Crackolândia. Por coincidência
(ou não) fui com aquela que foi a primeira pessoa que conheci da primeira vez
que cheguei a São Paulo, em 1999. Foi horrível chegar a São Paulo. Eu vinha com
a cabeça cheia de ideias de como seria o Brasil, todo um Brasil construído à
volta das novelas e músicas tropicais e aterrei em Guarulhos, que visualmente era
a linha de Sintra vezes mil, em escala mega-metrópole latino Americana, e foi
horrível. Passámos de Guarulhos para Santana e aquela sensação do “que raios
estou aqui a fazer?!?” não passava. Foram precisos dois dias e as Galerias do
Rock (e também um retiro em Pindamonhangaba) para ganhar um sentido e uma
impressão que nunca mais (acho eu) se vai embora: São Paulo é o meu sertão.
Quando chegámos a São Paulo, eu e “os portugueses”, fomos recebidos por um
grupo de pessoas muito incríveis e conheci pela primeira vez o jogo “o que você
prefere?”. Estas pessoas eram, quase todas, vegan como eu, e descobri logo ali
um paraíso ao qual voltaria muitos anos depois: saída de um lugar onde só havia
um Celeiro e uma fábrica (Cortegaça) onde nos podíamos abastecer eu, junk food
lover e designated alarve, estava no paraíso - em SP chamavam “podrão” ao
cachorro quente, que tinha TU-DO o que podemos imaginar E puré de batata (!!!)
e eu conseguia comer três seguidos. A cidade cheirava a fritos, e isso não era
uma coisa má. Havia um restaurante chinês, ao qual voltaria 10 anos depois
(quase) todos os sábados, onde havia uma comida nojenta e óptima (era preciso
ter sorte para acertar, ou já ter arriscado muito), e no cardápio liam-se
coisas como “lulas de soja”, “frango de tofu” e por aí vai. Havia açai. Acho
que só dois de nós, “dos portugueses”, curtiram esse sabor meio de terra/meio
de whisky (na altura, soube-me assim) que mais ninguém suportou (alguns anos
mais tarde, na Praia Grande, vários batidos foram jogados fora por um rapaz
que, do outro lado do balcão, não acreditava que alguém escolhesse beber uma
coisa com aquele sabor).
Mas também havia música e na verdade era por isso que lá estávamos e passávamos
os dias (ou pelo menos muito tempo) nas Galerias do Rock, que eram assim uma espécie
(eram mesmo) de um Centro Comercial DO ROCK. Ou seja, de música. Cada andar com
o seu estilo, tinha gótico, punk, metal, e claro, hardcore straight edge vegan and
whatnot. Foi aqui, não sei se
exactamente “aqui” nas Galerias do Rock mas aqui, em São Paulo, que conheci
Racionais e me tornei die hard fã do Mano Brown, um dos poetas mais incríveis.
Também passávamos muitas tardes em sebos, a comprar livros e discos, e trouxe
para casa o “Ando meio Desligado” dos Mutantes porque um dos meus amigos me cantava
(berrava) aos meus ouvidos “eu só quero/que você me queira” TODAS AS MANHÃS e
eu achava delicioso (e que eu, à minha maneira idiota e pouco disponível para
encarar de frente a dor emocional, gritei uns anos mais tarde aos ouvidos daquela
que era a pessoa que eu amava na época, numa cilada afectiva/rejeição da saída
daquela pessoa da minha vida).
Foi nesta viagem que fui pela primeira vez à USP e pensei, um dia vou
estudar aqui.
Foi nesta viagem que escolhi São Paulo sobre o Rio porque o Rio foi tão
desinteressante, e escolhi assim uma vida de comentários, “ah, mas o Rio,
aquela cidade incrível e linda” e eu sempre, “São Paulo é que é”, agora mais
por teimosia, para ser sincera, porque entretanto o Rio também aconteceu para
mim, primeiro em Lisboa, go figure, quando por causa de um trabalho
colaborativo entre artistas portugueses e brasileiros (não dava nada por isto)
chegaram a Lisboa 4 artistas brasileiros e chegou a casa o Francisco Frazão a
dizer, estes solos são incríveis e são numa piscina, vais gostar, dá uma
chance” (ele não falou exactamente assim porque não diz coisas como “dá uma
chance”, isso é meu, “Dá-lhe uma chance” e “Não nos sonegues”, que em bom rigor
até hoje não sei o que quer dizer, só me lembro de nós, no mar de Copacabana,
nós todos “os portugueses” abraçados e o Ricardo Avelino a rir e a gritar, e
aquele mar meio mole e bom, e sim, é impossível não achar o Rio lindo).
E eu então levei o Francisco Frazão muito a sério e fui, e logo de caras
amei o que vi porque vi o Filipe Rocha, que era um actor de teatro incrível já,
mas que para mim era o namorado da Shirley Manquinha da “Torre de Babel”, e
mais a Thiaré Maia, linda que dói, que era uma das meninas que vivia na casa da
mãe do Cauã Reymond (não me lembro do nome desta novela), e havia Michel
Blois, mais discreto, e depois havia Alex Cassal que se tornaria, muito
rapidamente, num dos meus heróis, tanto tanto que o meu filho quase que nasce
no mesmo dia do que ele, só à força da minha admiração. O Alex que me receberia
depois na sua casa no Rio, generosidade pura, e todas as pessoas que por ele
entraram na minha vida também: sobretudo a Clara, que me deixou ocupar o seu
fogão e cozinhar feijão preto, tantas saudades que eu tinha de casa que a
primeira coisa que fazia na casa de alguém era cozinhar, e que topou o meu lado
noveleiro e aceitou sem julgamentos, fez mais do que isso: levou-me ao Projac,
onde eu quase arrisquei fazer a maquilhagem da Malu Mader quando ela perguntou
quem era a maquilhadora e eu quase levantei o braço, pensei “Vale a pena ser
presa por isto” (mas depois oprimi-me, em boa hora). (Levou-me também ao
Mineirinho e à Academia da Cachaça, lugares de máxima importância, onde comi
escondidinho e tomei várias batidas de alguma coisa enquanto celebrava o
encontro bonito com Luz.)
Muitos anos depois, de passagem por São Paulo, conheci outra “família do
amor” que nos resgatou, a mim e à pessoa com quem viajava, de um cenário
assustador num hospital privado em Guarulhos: internada de emergência e na
iminência de ser operada antes mesmo de qualquer exame, parecia, a pessoa ao
meu lado tremia enquanto eu, eu também tremia internamente com a cabeça a mil,
e depois de um telefonema onde alguém gritava “Saia daí agora, Patrícia!” chega
uma voz grave que eu, no meio do meu delírio, associei ao Tim Maia e que dizia,
“Patrícia, você está calma? Fique calma, que tudo vai dar certo.” [entra
“Imunização Racional” como banda sonora deste momento lindo]. Este alguém, esta
família, tem um longo historial de acolher pessoas e tantas vezes me recebeu incluindo
desta, neste detour forçado que me obrigou a recordar São Paulo e ter a certeza
de que, um dia vou estudar aqui.
Ontem voltei a São Paulo porque saiu esta notícia da Crackolândia; há uns dias
já tinha circulado um vídeo em que vários moradores de rua se queixavam sobre a
actuação da polícia: uns perderam (foram retirados) os documentos o que, para
um morador de rua, é bastante mais horrível do que para outra pessoa, na minha
opinião; a outro “levaram até a ração do cachorro”. [Lembro-me, já de regresso
e a escrever sobre o meu trabalho, de ter lido a dissertação de Simone
Frangella sobre moradores de rua (que se tudo der certo vai contaminar imenso a
minha) e de ter achado que de facto a medida do avanço da inteligência das políticas
“sociais” (acho que não será a palavra certa, mas não consigo pensar em outra)
se traduzia (por exemplo) no facto de (alguns) abrigos em São Paulo terem uma
espécie de cacifo para prender e guardar os carros em que os moradores de rua
guardam as suas coisas, tinham sobretudo espaço para os cães dos moradores de
rua. Para uma pessoa que mora na rua e que tem pouco ou nenhum contacto físico,
ter um cão não é só um meio efectivo de estar alerta, descansando (o cão reage
a surpresas e isso permite abandonar-se um pouco), é também um aconchego. Em
São Paulo descobri que existia such thing as roubo dos cães que ficam presos à
porta (do supermercado, do Banco, etc) por moradores de rua, pelo amor/protecção
que trazem, e agora que escrevo isto penso que vêem sempre juntos, “amor” e
“protecção”, pelo menos da forma como habitualmente os concebemos, não é apenas
condição do morador de rua]. Ao ver aqueles vídeos e imagens, foi muito óbvio,
aquele primeiro embate, naquele dia em que chorei durante dois só à pala das
coisas que tinha visto, e vê-las foi mesmo importante porque estar visível é
acontecer/concretizar (foi também em São Paulo que descobri que a
híper-visibilidade, a in-yer-face visibilidade é sempre preferível ao
esconderijo para os que são alvos (mais) fáceis, naquela que é uma tentativa de
construir alianças com quem passa/com quem vê apesar de, infelizmente, esse
acordo tácito nem sempre funcionar, e algumas pessoas estão dispostas a aceitar
algumas coisas que vêm disfarçadas de “medidas de saúde pública” sem haver
muita noção do perigo que é essa ideia de “saúde pública” e as maldades que já
se fizeram/fazem em nome de). E nós a chegarmos ali, aos Campos Elíseos (quanta
perversidade), nós com as nossas roupas e sacos de panos cheios de discos
acabadinhos de sair das lojas da Barão Itapetininga, e depois já não éramos um
nós, já era eu a chorar e a fazer força para disfarçar e o meu amigo em cool,
vai ser pior se corrermos para trás agora, Pati, e a viramos uma esquina e
depois outra e um mini-parque infantil e crianças a rir e eu agora a pensar no “Laughter
Out of Place” da Goldstein sobre as favelas no Rio, e a pensar que raio de título, porque é que
ela acha que o riso está deslocado numa favela, este riso é real, e já nem me
lembro de como saí dali (foi de táxi) e durante dois dias estava meio que em
choque e percebi que não ia ser fácil.
E São Paulo ainda assim na minha memória, como o lugar em que se
concretizou definitivamente a ideia comensalidade enquanto experiência de amor,
mais, à la Bloch: como o lugar onde se materializa a consubstancialidade (o
envenenamento) e o afecto.
Patricia Azevedo da Silva nasceu em 1977 naquele que é, sem dúvida, o ano mais punk do século XX (serpente de fogo). Trabalha sobre a dádiva e a ideia de reciprocidade a partir da óptica do amor (a sua tese de doutoramento, “Pão é Amor Entre Estranhos”, ainda por terminar, aborda a ideia do alimento enquanto linguagem&afecto, a partir de trabalho de campo realizado em São Paulo). Na sua tese de mestrado, “Para lá do prejuízo”, trabalhou os temas de género, colonialismo e performance a partir da análise de experiências de mulheres brasileiras a viver em Lisboa.
Trabalhou com quase todas as produtoras de cinema em Lisboa (nos anos 2000) e foi aí que descobriu a importância da repetição (no sentido de repetir obras). Também foi ganhando outras relações com outras ideias de teatro e, actualmente, tenta fazer o mesmo com a dança (e, ainda remotamente, com as artes plásticas).
Cresceu em Queluz, Monte Abraão, e a ideia de periferia e subúrbio está presente em tudo o que faz, pela via da marginalidade e pela forma encantada como aprecia pracetas. É mãe.
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