Aborrecimento, quase poesia
III:
Diante de quê?
É sempre outro, o texto que
se arma.
Premeditava escrever uma lata de
coisas sobre a questão do desaparecimento, convencido que está de que
ele próprio desapareceu, de que está desaparecendo, de que – de alguma forma –
veio dar a esta cidade com vistas a isso. Ocupa-se do assunto há algumas
semanas. Espirala-se. De tanto ruminar, o tema por fim se externa,
faz uma precipitação, conforma-se numa realidade independente e opressora. Agora
é arrostar com coisa vasta demais, intricada demais, e que ele sente
confusamente ter arremessado de si próprio.
Houve momento em que este processo
poderia ter sido interrompido? As ideias não caem bem, são como roupas que
recusam o portador, saem andando.
Sinistra ronda sem corpo.
Reconhece, afinal, a autoridade
diante da qual coça as barbas, apatetado, metido no roupão de microfibra bordô
que há tempos adotou como pátria primeira: o texto que paira, rapinante, sobre
o texto que se escreve; a reflexão gorada; um ror de improvisos elegantes e
concisos que lhe escapa, e que lhe escapa exemplarmente.
Retroceder da canção em vez de atacá-la.
*
Sempre outro, sempre aquém, o texto
a que chegamos. Sempre o mesmo adiamento, envio ao tempo seguinte, outra
ocasião, o mesmo giro manco em torno do que deve ser exprimido.
À volta, a mesma matilha de horas,
cada vez mais próxima. E a razão, ao fim e ao cabo, dá-se a elas.
Teve, em algum momento, certa
identidade de porte com a ideia de desaparecer, mas este momento passou. Excedeu-se.
Como, de resto, sempre fazem os momentos. Arrebentam o périplo, sangram por
todos os lados, azul de realeza a manchar os carpetes.
Processo pelo qual um pensamento agiganta-se
até tornar-se impensável.
Um gigante, como se derruba um
gigante?
Talvez com imagens.
De todo modo, não será combate
limpo. Tem a ideia por algo a sabotar com imagens, ritmos, música, trívia.
Tem a ideia por algo a implodir por meios escusos, com a astúcia bastante baixa
que foi obrigado a desenvolver ao longo da vida, por uma questão de sobrevivência.
Que imagens arremessar contra a
ideia do desaparecimento? Em que imagens resolvê-la?
Há poucos dias, folheando uma coletânea
de Sophia de Mello Breyner Andresen, leu um poema chamado “Praia”. Nele,
através dele, chega bastante atônito a uns pássaros atirados contra a luz
como pedradas.
*
Posta-se diante da piscina pública
em construção.
(A piscina pública em construção é
uma imagem do desaparecimento? Uma canção do desaparecimento?)
A razão dá-se às horas.
Sua sede, sua fome, sua desumanidade,
em tudo isto não vê senão justeza, uma engrenagem em pleno
funcionamento.
É mesmo belo, quando pensa a fundo.
Não se compreende a coisa. Não se
compreende absolutamente. Sabe-se apenas que funciona.
E o mundo não se reduz tão mole a
uma série de atributos clássicos e signos essenciais. Estamos muito
longe agora. Do mar, da luz, da areia, das paredes desadornadas e
brancas, das vistas de clareza elementar.
E no entanto, há estes pássaros,
este itinerário violento contra a luz, as pedradas em que se mudam em pleno
voo.
Um pássaro-pedrada fere tanto a
noção de pássaro quanto a de pedra.
Segue despachando notícias de C...,
a toca para a qual o conduziu seu caráter eminentemente roedor. Vai enviando
circulares ao longo das quais enaltece a eficácia de seus perseguidores, que
ainda não lhe apanharam sabe-se lá como.
Apanharão. Em bom tempo apanharão.
Relata progressos.
“Puseram
já as telhas e instalaram a eletricidade, mas a piscina segue vazia”.O autor desta coluna chama-se Ismar Tirelli Neto.
"Ismar Tirelli Neto é poeta, ficcionista, roteirista e tradutor. Nasceu em 1985, no Rio de Janeiro. Vive e trabalha atualmente em Curitiba. Lançou os seguintes livros: synchronoscopio, Ramerrão e Os Ilhados".
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