Semanário da Gata Livreira Maravilhas: 2
Maçada! Da maçada da página em branco se queixam os escritores, que bem os ouço nas suas longas lamentações existenciais aqui por casa. Seres demasiado peculiares. Tanto, que nem sempre me apetece entreabrir um olho para os observar. Só a maçada que isso seria. Nem eu preciso disso pois conheço-os pelo cheiro, por exemplo, mas reservo esse assunto para um dia menos maçador, o assunto “A que cheiram os escritores”, hum. Eu, por exemplo, sei.
Também os conheço pela forma como se entoam a si próprios e aos seus estados de alma. Pela voz, quero dizer. Que nunca alcança a poética presente na vasta gama de trinados dos nossos miados. Com a excepção ali do teatro de S. Carlos, meu vizinho cujos telhados conheço bem, posto que por ali flirtei quando era nova, nem sempre com sucesso por causa, justamente, da maçada dos ensaios. Mas como me afasto do tema!
Maçada. A mim, a página em branco não maça coisa nenhuma. Aquilo é, de todas as perspectivas, de frente, de costas ou, como dizem os humanos, de frente e verso, uma folha de papel. Por que havia uma folha de papel de me maçar? É verdade que é feita de pasta de papel e é verdade que, para existir e poder maçar a existência vocacionada para maçadas que é a dos escritores, morreram árvores. Ou seja, a página em branco, pensem comigo, a maçar alguém, maça as árvores. E muito.
Para mim, que graças aos deuses não sou escritora, excepto no devaneio destas páginas cuja brancura em nada me aflige, para mim, dizia, a maçada mais maçadora, excluindo a visita ao veterinário, é a semana que começa. Porque não há semana que não comece e isso é uma grande maçada. Todas as semanas começam. Pior: todas as semanas começam à segunda-feira. Mal acaba um domingo, não se pode respirar que logo entra a segunda-feira. Todos os domingos, sucessivamente. Sempre, sempre, sempre. Não muda nunca. Ora, se este disparate, se esta nascente de sonolência desinspirada, se esta MAÇADA não é coisa saída de cabeça humana, eu vou ali e já venho. Têm que estar sempre ocupados, sempre a inventar coisas, os humanos. Não conseguem dedicar-se à feliz arte do sono ou à clássica dança do lento espreguiçar ou aos banhos demorados sob o sol.
Isto do calendário semanal, digam-me, que sentido faz? Não poderia ser como a sequência numérica uma não-repetição-não-surpreendente-e-no-entanto-sempre-nova? Poderia. Agora, esta agoniante repetição, esta circularidade, esta maçada? Para quê? Excepto que me recorda a expressão “pescadinha de rabo na boca” e dessa eu gosto.
Por que me aborrecem as segundas-feiras? Há um bulício diferente. Os humanos aqui de casa aparecem, matinais, uns mais frescos e felizes da vida do que outros, e começam a trabalhar. Se fosse só, mas não. Desde que entram e até começarem a trabalhar dedicam-me algum do seu tempo. Como se eu gostasse disso. Como se eles me importassem. São de outra raça, de outro credo, de outra criação. Basta-me que me prestem a serventia para que foram criados. Que limpem o que está sujo, me ponham a mesa, enfim. E, principalmente, não me dêem festas a menos que eu as solicite. Porque o assunto “mãos” não é assunto menor.
As palmas das mãos humanas são, seguramente, das mais infelizes criações. Ao nível da água a ferver, por exemplo, esse tipo de desastre. Lisas, sem pelagem macia, ora frias ora quentes, muitas vezes húmidas, às vezes ressequidíssimas, as palmas das mãos humanas não chegam aos calcanhares das belas patas, fortes, bem almofadadas, de garras bem tratadas, de um felino. E dá-lhes para me passarem aquilo pelo lombo.
Ah, mas durante o fim-de-semana… quanta alegria! Os humanos cá de casa desampararam a loja, de vez em quando lá aparece um ou uma, mas maça menos. Com a livraria fechada tenho outro sossego e não preciso aguardar, como durante a semana, pela gratificação que são as minhas noites solitárias. Ao fim-de-semana o dia decorre inteiro como as minhas noites e vivo um sossego prolongado em que a luz de sol toma o lugar do luar. Humanos estrangeiros lá páram à porta para me observar, acham-me mais graça do que aos livros e têm razão porque bem graciosa sou. Nunca lhes ligo nada. Enfiam pacotinhos de açúcar pela frincha da caixa do correio, talvez porque lhes passe pela cabeça que vou rasgar aquele invólucro e comer aquele veneno. Nunca! Sou uma gata espertíssima.
Conhecem a expressão “aqui há gato”? Fui eu quem a inventou. Significa: aqui há um olhar sábio, aqui há juízo. Humanamente significa outra coisa; significa “marosca”, parece. É uma palavra cuja sonoridade me agrada. Lembra mosca.
E assim se fez outra página do meu semanário, assim dei cabo de mais uma página em branco.
Bien à vous.
Também os conheço pela forma como se entoam a si próprios e aos seus estados de alma. Pela voz, quero dizer. Que nunca alcança a poética presente na vasta gama de trinados dos nossos miados. Com a excepção ali do teatro de S. Carlos, meu vizinho cujos telhados conheço bem, posto que por ali flirtei quando era nova, nem sempre com sucesso por causa, justamente, da maçada dos ensaios. Mas como me afasto do tema!
Maçada. A mim, a página em branco não maça coisa nenhuma. Aquilo é, de todas as perspectivas, de frente, de costas ou, como dizem os humanos, de frente e verso, uma folha de papel. Por que havia uma folha de papel de me maçar? É verdade que é feita de pasta de papel e é verdade que, para existir e poder maçar a existência vocacionada para maçadas que é a dos escritores, morreram árvores. Ou seja, a página em branco, pensem comigo, a maçar alguém, maça as árvores. E muito.
Para mim, que graças aos deuses não sou escritora, excepto no devaneio destas páginas cuja brancura em nada me aflige, para mim, dizia, a maçada mais maçadora, excluindo a visita ao veterinário, é a semana que começa. Porque não há semana que não comece e isso é uma grande maçada. Todas as semanas começam. Pior: todas as semanas começam à segunda-feira. Mal acaba um domingo, não se pode respirar que logo entra a segunda-feira. Todos os domingos, sucessivamente. Sempre, sempre, sempre. Não muda nunca. Ora, se este disparate, se esta nascente de sonolência desinspirada, se esta MAÇADA não é coisa saída de cabeça humana, eu vou ali e já venho. Têm que estar sempre ocupados, sempre a inventar coisas, os humanos. Não conseguem dedicar-se à feliz arte do sono ou à clássica dança do lento espreguiçar ou aos banhos demorados sob o sol.
Isto do calendário semanal, digam-me, que sentido faz? Não poderia ser como a sequência numérica uma não-repetição-não-surpreendente-e-no-entanto-sempre-nova? Poderia. Agora, esta agoniante repetição, esta circularidade, esta maçada? Para quê? Excepto que me recorda a expressão “pescadinha de rabo na boca” e dessa eu gosto.
Por que me aborrecem as segundas-feiras? Há um bulício diferente. Os humanos aqui de casa aparecem, matinais, uns mais frescos e felizes da vida do que outros, e começam a trabalhar. Se fosse só, mas não. Desde que entram e até começarem a trabalhar dedicam-me algum do seu tempo. Como se eu gostasse disso. Como se eles me importassem. São de outra raça, de outro credo, de outra criação. Basta-me que me prestem a serventia para que foram criados. Que limpem o que está sujo, me ponham a mesa, enfim. E, principalmente, não me dêem festas a menos que eu as solicite. Porque o assunto “mãos” não é assunto menor.
As palmas das mãos humanas são, seguramente, das mais infelizes criações. Ao nível da água a ferver, por exemplo, esse tipo de desastre. Lisas, sem pelagem macia, ora frias ora quentes, muitas vezes húmidas, às vezes ressequidíssimas, as palmas das mãos humanas não chegam aos calcanhares das belas patas, fortes, bem almofadadas, de garras bem tratadas, de um felino. E dá-lhes para me passarem aquilo pelo lombo.
Ah, mas durante o fim-de-semana… quanta alegria! Os humanos cá de casa desampararam a loja, de vez em quando lá aparece um ou uma, mas maça menos. Com a livraria fechada tenho outro sossego e não preciso aguardar, como durante a semana, pela gratificação que são as minhas noites solitárias. Ao fim-de-semana o dia decorre inteiro como as minhas noites e vivo um sossego prolongado em que a luz de sol toma o lugar do luar. Humanos estrangeiros lá páram à porta para me observar, acham-me mais graça do que aos livros e têm razão porque bem graciosa sou. Nunca lhes ligo nada. Enfiam pacotinhos de açúcar pela frincha da caixa do correio, talvez porque lhes passe pela cabeça que vou rasgar aquele invólucro e comer aquele veneno. Nunca! Sou uma gata espertíssima.
Conhecem a expressão “aqui há gato”? Fui eu quem a inventou. Significa: aqui há um olhar sábio, aqui há juízo. Humanamente significa outra coisa; significa “marosca”, parece. É uma palavra cuja sonoridade me agrada. Lembra mosca.
E assim se fez outra página do meu semanário, assim dei cabo de mais uma página em branco.
Bien à vous.
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