Folhetim Detectivesco: 2
ONDE SE FALA DE QUARTEIRÕES E DE SEMIÓTICA.
A primeira casa onde vivi fazia parte de um quarteirão.
Um quarteirão não quer dizer “temos que andar mais quilómetros para chegar aquela loja/praça/museu/exposição, estamos em sangue, por favor e se nos enfiássemos num táxi e fossemos comer, de qualquer modo estou farta de t-shirts giras, edifícios fantásticos, Caravaggios e o Van Gogh e as múmias que se lixem”.
Descrevi isto assim para dar ‘l’air du temps’.
O quarteirão onde vivi era limitado por quatro ruas, quatro filas de prédios que formavam um quadrado impecável no exterior. Tinha uma entrada, com uma chave ciosamente guardada por não sei quem. O interior eram as traseiras das casa, os locais onde se fazia o trabalho infindável, cozinhar, lavar roupa, engomar roupa, dar lanche às crianças.
E os quintais. Pelos quintais conheciam-se as pessoas. No nosso havia flores, algumas que não tornei a ver. Amores-perfeitos, gladíolos açucenas, todos fúnebres. E uma trepadeira de rosas. E árvores, que tinham o nosso nome. As minhas eram ameixoeiras e nunca comi melhores ameixas do que essas, amarelas e douradas ao sol. As outras, não quero lembrá-las agora.
Uma maria-rapaz que vive grande parte da vida dentro de um quarteirão, observa muita coisa. Talvez tenha começado aí. Eu lia empoleirada em árvores, caminhava sobre muros, passava de uns espaços para os outros, conhecia as rotinas mais do que as pessoas.
Era uma gata, a tomar todos os espaços como meus. Também aprendi a ser dissimulada. Porque, uma vez, disse ao jantar: – “ O pai da Teresinha vai casar com a Fiona, não vai?”
(‘casar’ foi amoroso, eu era uma criança. A mãe da Teresinha, a tia Eugénia, era uma doente crónica. Tudo lhe dava achaques e tudo, mas tudo, impedia que a Teresinha e o pai da Teresinha fizessem fosse o que fosse. Que ela piorava. Então, contrataram uma miss, a Fiona, uma inglesa leitosa, vagamente parecida com a Faithfull. E com vinte e quatro anos. E com umas mini-saias do caraças. E eu comecei a ver, nas corda da roupa, além das respeitáveis ‘cintas’ da mãe da Teresinha e o, pronto, ‘underware’ da Teresinha, muito parecido com o meu as cuequinhas de renda coloridas, da Fiona. Q.E.D.)
Levei uma descompostura. Duas semanas depois, o pai da Teresinha fez um bruto desfalque no banco onde sempre trabalhara pacatamente. Sumiu-se e a Fiona com ele. Deixou a mulher e a filha numa situação terrível. Mas, bem. Numa situação terrível já estava a mulher, coitadinha.
1ª Lição – Não abusem da paciência dos outros.
2ª Lição – O que é óbvio vê-se. Obviamente.
3ª Lição – Lá por seres amiga da Teresinha não quer dizer que o pai dela não seja um ladrão e um adúltero que se marimba na filha.
Estava formada. Mas tive que crescer, aos doze anos não se pode ser detective. Não se pode ser nada, de resto.
E, depois aconteceram-me coisas. Vou contar. Hoje não.
Um quarteirão não quer dizer “temos que andar mais quilómetros para chegar aquela loja/praça/museu/exposição, estamos em sangue, por favor e se nos enfiássemos num táxi e fossemos comer, de qualquer modo estou farta de t-shirts giras, edifícios fantásticos, Caravaggios e o Van Gogh e as múmias que se lixem”.
Descrevi isto assim para dar ‘l’air du temps’.
O quarteirão onde vivi era limitado por quatro ruas, quatro filas de prédios que formavam um quadrado impecável no exterior. Tinha uma entrada, com uma chave ciosamente guardada por não sei quem. O interior eram as traseiras das casa, os locais onde se fazia o trabalho infindável, cozinhar, lavar roupa, engomar roupa, dar lanche às crianças.
E os quintais. Pelos quintais conheciam-se as pessoas. No nosso havia flores, algumas que não tornei a ver. Amores-perfeitos, gladíolos açucenas, todos fúnebres. E uma trepadeira de rosas. E árvores, que tinham o nosso nome. As minhas eram ameixoeiras e nunca comi melhores ameixas do que essas, amarelas e douradas ao sol. As outras, não quero lembrá-las agora.
Uma maria-rapaz que vive grande parte da vida dentro de um quarteirão, observa muita coisa. Talvez tenha começado aí. Eu lia empoleirada em árvores, caminhava sobre muros, passava de uns espaços para os outros, conhecia as rotinas mais do que as pessoas.
Era uma gata, a tomar todos os espaços como meus. Também aprendi a ser dissimulada. Porque, uma vez, disse ao jantar: – “ O pai da Teresinha vai casar com a Fiona, não vai?”
(‘casar’ foi amoroso, eu era uma criança. A mãe da Teresinha, a tia Eugénia, era uma doente crónica. Tudo lhe dava achaques e tudo, mas tudo, impedia que a Teresinha e o pai da Teresinha fizessem fosse o que fosse. Que ela piorava. Então, contrataram uma miss, a Fiona, uma inglesa leitosa, vagamente parecida com a Faithfull. E com vinte e quatro anos. E com umas mini-saias do caraças. E eu comecei a ver, nas corda da roupa, além das respeitáveis ‘cintas’ da mãe da Teresinha e o, pronto, ‘underware’ da Teresinha, muito parecido com o meu as cuequinhas de renda coloridas, da Fiona. Q.E.D.)
Levei uma descompostura. Duas semanas depois, o pai da Teresinha fez um bruto desfalque no banco onde sempre trabalhara pacatamente. Sumiu-se e a Fiona com ele. Deixou a mulher e a filha numa situação terrível. Mas, bem. Numa situação terrível já estava a mulher, coitadinha.
1ª Lição – Não abusem da paciência dos outros.
2ª Lição – O que é óbvio vê-se. Obviamente.
3ª Lição – Lá por seres amiga da Teresinha não quer dizer que o pai dela não seja um ladrão e um adúltero que se marimba na filha.
Estava formada. Mas tive que crescer, aos doze anos não se pode ser detective. Não se pode ser nada, de resto.
E, depois aconteceram-me coisas. Vou contar. Hoje não.
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