O filho da mãe, de Bernardo Carvalho

«— Não posso ter filhos. Demorei mais de vinte anos para dizer isso sem ter que me explicar. Esperei as mulheres da nossa geração chegarem à idade de não poder mais ter filhos.
— Então, por quem você veio?
As duas estão sentadas num café da rua Rubinshtein. Não se viam fazia quase quarenta anos. Foram colegas de classe. Ainda estão sob o impacto do acaso e do reconhecimento, embora nem fossem tão próximas na escola.
No início da tarde, Iúlia Stepánova aproveitou a visita ao médico para rever o mercado da travessa Kuzniétchni — uma lembrança de infância, de quando a mãe a levava para comprar verduras e smetana — e depois fazer o que vinha planejando havia dias, desde que recebera o resultado dos exames. Não precisava voltar ao trabalho. Já não reconhecia quase nada naquela parte da cidade. Raramente passava por ali. Fazia vinte anos que não voltava ao consultório do dr. Juravliov. Agora, terá que decidir se quer recomeçar as sessões e passar por tudo de novo. O mundo em volta está mudado — ou em obras, recebendo os últimos retoques. “A cidade vai renascer”, diz um cartaz pendurado num edifício construído no style moderne, uma fantasmagoria típica do início do século XX, cenário recorrente dos seus pesadelos de criança. Há mais policiais nas ruas, por causa dos atentados, mas sobretudo depois do massacre no teatro da rua Dubróvskaia, em Moscou, em outubro passado.
Ao sair do mercado com um pacote de queijo e outro de frutas, ela seguiu por mais três quadras até a rua Raziézjaia e parou diante da entrada soturna de um prédio que permanecia deteriorado a despeito dos preparativos para a comemoração do tricentenário.
A voz do médico ainda ecoava nos seus ouvidos: “Há vinte anos, optamos por um procedimento radical para uma mulher da sua idade, que não tinha filhos, porque não queríamos correr riscos. E durante vinte anos nós lhe demos uma vida de qualidade. Agora, temos um novo problema aqui, está vendo? Não vou lhe dar esperanças. Cabe a você decidir o que vamos fazer”. Ao ouvir a sentença, Iúlia sentiu, pela primeira vez, que não podia morrer sem salvar uma vida.»


O filho da mãe, de Bernardo Carvalho

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