O Cónego, de A. M. Pires Cabral
«NESSA NOITE, ANTES DE DORMIR, e como o sono me fizesse negaças, reflecti um pouco sobre o ponto em que me encontrava. A impressão que tinha era a de que estava como um cego abandonado sem cão e sem bengala num lugar desconhecido.
Na verdade, sentia-me cada vez mais incapaz de atingir a verdade. As contradições entre testemunhos eram tão numerosas e em pontos tão decisivos, as interpretações dos mesmos factos pelos diferentes informadores tão díspares, que parecia que estavam a contar histórias diferentes sobre personagens diferentes. A verdade tornava-se assim um desiderato remoto, cada vez mais difícil de alcançar.
Para piorar as coisas, às vezes sentia que se instalava em mim uma progressiva aversão pela história do Cónego. Que ele tinha marcado a vida de muita gente, isso tinha, incluindo a de todos aqueles com quem eu conversara já e certamente a de muitos mais. De que maneira a marcara, conseguia eu ir descortinando nos testemunhos que me iam dando dele, nas próprias inflexões da voz — amistosa ou subtilmente hostil — com que falavam. Mas valeria a pena ir além disso? Que me importava a mim, afinal, que o Cónego tivesse sido um santo ou um pecador, um sonhador ou um oportunista, um liberal ou um unhas-de-fome? Que tivesse sido generoso ou egoísta, sincero ou hipócrita, um homem notável pelas virtudes ou um canalha da pior espécie? Um sábio ou um ignorante? Um cínico ou um ingénuo? Claro que sentia o apelo da classe a influenciar-me os juízos: o Cónego era um dos meus. E o padre Agostinho, cuja versão exaltava as virtudes do Cónego e silenciava (ou relativizava) os defeitos, também era um dos meus. Mas sentia igualmente que não podia nem devia permitir que um preconceito corporativo me obstruísse com pedregulhos inamovíveis o caminho para a verdade.
Mas o que de facto me apetecia era pôr uma pedra definitiva sobre o assunto. Simplesmente era tarde. Envolvera-me de tal maneira que as próprias pessoas continuariam a carrear para mim, fragmento a fragmento, as suas versões da história, mesmo sem eu lho pedir. Achava-me condenado, como um grilheta, a continuar a fossar naquele húmus malsão. Ou, como um Sísifo esgrouviado, a rolar incessantemente monte acima um calhau que cada novo testemunho fazia recuar até ao sopé.»
O Cónego, A. M. Pires Cabral
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