Cassandra, de Christa Wolf, no Jornal de Letras
«Enone, que Páris tinha trazido dos montes e que todos na cozinha adoravam, parecia abatida. Servia à mesa, tinham-lhe destinado o par real e o hóspede, e eu percebi que ela se obrigava a sorrir. No corredor apanhei-a quando bebia de um trago uma taça de vinho. Os tremores já tinham começado a manifestar-se em mim, mas ainda conseguia reprimi-los. Não liguei nada às personalidades que se apertavam à nossa volta, e perguntei a Enone o que tinha. O vinho e os cuidados tinham afastado a sua timidez em relação a mim. Páris estava doente, disse com os lábios lívidos, e nenhuma das suas mezinhas ajudava. Enone, que, segundo a criadagem, tinha sido uma ninfa de água na outra vida, conhecia todas as plantas e os seus efeitos no organismo humano, quase todos os doentes no palácio iam ter com ela. Mas a doença de Páris não a conhecia, e metia-lhe medo. Ele amava-a, disso tinha sinais iniludíveis. Mas quando o tinha nos braços ele chamava alto pelo nome de uma outra mulher: Helena, Helena. Afrodite ter-lha-ia prometido. Mas já alguma vez alguém tinha ouvido que Afrodite, a nossa querida deusa do amor, empurrasse um homem para uma mulher que ele não ama? Nem sequer conhece! E que só quer possuir porque ela passa por ser a mais bela de todas as mulheres? E porque possuindo-a ele se tornará o primeiro entre todos os homens?»
Cassandra, de Christa Wolf (trad. João Barrento)
Helena de Tróia (1898), de Evelyn De Morgan |
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