Três Contos da Índia, de Rudyard Kipling

NA MURALHA DA CIDADE

«A profissão de Lalun é a mais antiga do mundo. Lilith era a sua própria bisavó, e isto antes dos tempos de Eva, como toda a gente sabe. No Ocidente, as pessoas falam desagradavelmente
da profissão de Lalun; escrevem ensaios sobre ela e distribuem-nos entre os jovens para que a Moralidade seja mantida. No Oriente, onde tal profissão é hereditária e passa de mãe para filha, ninguém escreve ensaios ou repara, o que prova a incapacidade do Oriente para tratar dos seus próprios assuntos.
O verdadeiro marido de Lalun – pois, no Oriente, até mesmo as mulheres com a profissão de Lalun têm de ser casadas – era uma grande árvore de jujuba. A mãe, que tinha casado com uma figueira, gastou dez mil rupias com o casamento de Lalun, que foi abençoado por quarenta e sete sacerdotes do credo da mãe, e distribuiu cinco mil rupias em esmola aos pobres. Era esse o costume do país. As vantagens de ter uma árvore de jujuba como marido são óbvias. Tem um ar imponente e é impossível
ofendê-la.
O marido de Lalun erguia-se na planície fora das muralhas da cidade e a casa dela ficava sobre a muralha Leste diante do rio. Se alguém caísse do largo parapeito da janela, caía dez metros até à vala. Mas se uma pessoa se deixasse ficar onde devia e contemplasse as redondezas, via o gado a ser levado para beber água, os estudantes do colégio do governo a jogar críquete, as
árvores e a erva alta nas margens do rio, grandes bancos de areia que orlavam o rio, os túmulos vermelhos dos imperadores mortos para lá do rio e, muito ao longe, através da neblina azul do calor, a neve dos Himalaias a cintilar.
Wali Dad costumava deitar-se no parapeito da janela durante horas seguidas a contemplar esta vista. Era um jovem maometano que sofria gravemente da educação administrada pelos ingleses e dava-se conta disso. O pai tinha-o enviado
para uma escola missionária a fim de adquirir sabedoria e Wali Dad absorvera mais do que o pai ou os missionários tinham tencionado dar-lhe. Quando o pai morreu, Wali Dad ficou por conta própria e passou dois anos a estudar os diferentes credos deste mundo e a ler livros sem utilidade nenhuma para ninguém.
Após uma malograda tentativa para ser admitido na Igreja Católica Romana e Presbiteriana ao mesmo tempo (os missionários aperceberam-se disso e fartaram-se de lhe chamar nomes sem compreender o seu problema), Wali Dad avistou Lalun na muralha da cidade e tornou-se no mais constante dos seus poucos admiradores. Tinha uma cabeça que faria os artistas ingleses delirar e pintá-la no meio de extravagantes decorações – um rosto que as romancistas usariam com deleite ao longo de novecentas páginas. Na verdade, ele era apenas
um jovem maometano de boa aparência com sobrancelhas bem desenhadas, narinas pequenas, mãos e pés pequenos e uma expressão cansada nos olhos. Pelo facto de ter vinte e dois anos, deixara crescer uma barba negra bem cortada que ele afagava com orgulho e mantinha delicadamente perfumada. A sua vida parecia dividir-se entre pedir-me livros emprestados e fazer a corte a Lalun no parapeito da janela. Compunha canções em homenagem dela e algumas dessas canções ainda hoje são cantadas na cidade, da rua dos Talhantes de Carneiro ao pátio dos Latoeiros.
Uma das canções, a mais bonita de todas, conta que a beleza de Lalun era tão grande que perturbou o coração do governo britânico e fez com que os seus funcionários perdessem a paz
de espírito. É assim que essa canção é cantada nas ruas, mas, se prestarmos atenção e nos apercebermos do seu significado oculto, verificaremos que há nela três trocadilhos – “beleza”,
“coração” e “paz de espírito” – e, assim, a sua interpretação é a seguinte: “A subtileza de Lalun perturbou a administração do governo que perdeu tal e tal funcionário.” Quando Wali Dad canta esta canção, os seus olhos brilham como carvões em brasa e Lalun recosta-se nas almofadas e atira-lhe botões de jasmim.»

in "Três Contos da Índia", Rudyard Kipling
(trad. José Luís Luna)

Comments

Popular Posts