O último Natal de guerra, de Primo Levi

«Timóteo, o pai, e todos os antepassados desde os tempos mais remotos tinham sempre fabricado espelhos. Num aparador da casa conservavam-se ainda espelhos de cobre, esverdeados pela oxidação, e espelhos de prata escurecidos por séculos de emanações humanas; outros de cristal, emoldurados em marfim ou em madeiras de qualidade. Morto o pai, Timóteo sentiu-se liberto do vínculo da tradição; continuou a fazer espelhos a preceito, que vendia com lucro por toda a região, mas recomeçou a meditar sobre um projecto antigo.
Desde pequeno, às escondidas do pai e do avô, tinha violado as regras da corporação. De dia, nas horas da oficina, como um aprendiz diligente fazia os habituais espelhos aborrecidos, transparentes, incolores, aqueles que, como se costuma dizer, devolvem a imagem verídica (mas virtual) do mundo, e em particular dos rostos humanos. À noite, quando ninguém o vigiava, fazia espelhos diferentes. O que faz um espelho? “Reflecte”, como uma mente humana. Mas os espelhos habituais obedecem a uma lei física simples e inexorável: reflectem como uma mente rígida, obcecada, que pretende recolher dentro de si a realidade do mundo. Como se existisse apenas uma realidade! Os espelhos secretos de Timóteo eram mais versáteis.
"O Apartamento" (1960), Billy Wilder
Havia espelhos de vidro colorido, estriado, lactescente: reflectiam um mundo mais vermelho ou mais verde que o verdadeiro, ou variegado, ou com contornos delicadamente esfumados, de forma que os objectos ou as pessoas pareciam aglomerar-se entre si como nuvens. Havia espelhos múltiplos, feitos de lâminas ou estilhaços engenhosamente dispostos em ângulo: estes quebravam a imagem, reduziam -na a um mosaico gracioso mas indecifrável. Um engenho, que a Timóteo custara semanas de trabalho, invertia o alto e o baixo e a direita e a esquerda. Quem olhasse para o espelho sentia primeiro uma vertigem intensa, mas insistindo algumas horas acabava por se habituar ao mundo virado do avesso, e sentia depois náusea perante o mundo subitamente direito. Outro espelho era constituído por três painéis, e quem se olhasse nele veria o seu rosto multiplicado por três: Timóteo ofereceu-o ao pároco para que, na catequese, explicasse às crianças o mistério da Trindade.
Havia espelhos que aumentavam, como erroneamente se diz dos olhos dos bois, e outros que diminuíam, ou faziam com que as coisas parecessem infinitamente distantes. Em alguns espelhos as pessoas viam -se esticadas, noutros largas e gordas como um Buda. Para o oferecer a Ágata, Timóteo fabricou a partir de uma lâmina de vidro levemente ondulada um espelho de armário, mas obteve um resultado que não tinha previsto. Se a pessoa olhava sem se mover, a imagem mostrava apenas leves deformações; se, pelo contrário, se movia para cima e para baixo, flectindo levemente os joelhos ou levantando-se em bicos de pés, a barriga e o peito escorriam impetuosamente para a parte alta ou baixa do corpo. Ágata viu-se transformada primeiro numa mulher-cegonha, com ombros, seio e ventre comprimidos num pacote suspenso sobre duas longuíssimas pernas magras; logo depois, num monstro filiforme de onde pendia tudo o mais, um monte de hérnias esmagado e tosco como o barro de um ceramista que cede debaixo do seu peso. A história acabou mal. Ágata quebrou o espelho e rompeu o namoro, e Timóteo sofreu. Mas não muito.
Pensava num projecto mais ambicioso. Experimentou secretamente vários tipos de vidro e de prateação, submeteu os seus espelhos a campos eléctricos, irradiou-os com lâmpadas que tinha feito chegar de países distantes, até que lhe pareceu estar próximo do seu objectivo, que era o de obter espelhos metafísicos. Um Spemet, ou seja um espelho metafísico, não obedece às leis da óptica, mas reproduz a imagem de uma pessoa do ponto de vista de quem estiver à sua frente: a ideia era antiga, já tinha sido pensada por Esopo e sabe -se lá por quantos outros, antes e depois dele. Timóteo foi o primeiro a conseguir concretizá-la.
Os Spemet de Timóteo eram do tamanho de um cartão de visita, flexíveis e autocolantes, pois destinavam -se a ser aplicados na testa. Timóteo testou o primeiro exemplar colando-o na parede, e não viu nada de especial: a sua imagem habitual e algo chã, de homem de trinta anos já a ganhar entradas, com ar arguto e distraído: fazia sentido, era uma parede que não vê ninguém, não alberga nenhuma imagem de quem lhe está à frente. Preparou umas vinte amostras, e pareceu -lhe justo oferecer a primeira a Ágata, com quem mantinha uma relação atormentada, para que ela lhe perdoasse a história do espelho ondulado.
Ágata recebeu -o friamente; ouviu as explicações com desatenção ostensiva, mas quando Timóteo lhe propôs que colasse o Spemet na testa, não esperou que ele lho dissesse duas vezes: tinha percebido demasiado bem, pensou Timóteo. De facto, a imagem de si próprio que viu, como se olhasse para um pequeno écran, era pouco lisonjeira. Em vez de ter entradas, a cabeça era completamente careca, tinha os lábios semicerrados num esgar melífluo através do qual se entreviam os dentes estragados (pois é, há muito que adiava os tratamentos que o dentista lhe tinha proposto), a sua expressão não era distraída mas idiota, e o seu olhar era muito estranho. Estranho porquê? Não demorou muito a perceber: num espelho normal, os olhos olham sempre para quem olha; naquele, ao contrário, olhavam enviesados para a esquerda. Aproximou-se e afastou -se um pouco: os olhos, de golpe, fugiram para a direita. Timóteo deixou Ágata com sentimentos contrastantes: a experiência correra bem, mas se era assim que Ágata o via, a separação só podia ser definitiva.
Ofereceu o segundo Spemet à mãe, que não pediu explicações. Viu-se adolescente, louro, róseo, etéreo e angélico, com os cabelos bem penteados e o nó da gravata à altura certa: como a recordação de um morto, pensou de si para consigo. Nada a ver com as fotografias escolares que encontrara anos antes numa gaveta, que mostravam um rapazinho esperto mas indiferenciável da maior parte dos seus colegas.
O terceiro Spemet estava destinado a Emma, não tinha dúvidas. Timóteo deslizara de Ágata para Emma sem sobressaltos. Emma era pequena, preguiçosa, quieta e esperta. Debaixo dos cobertores, tinha ensinado a Timóteo alguns truques de que ele nunca se teria lembrado sozinho. Era menos inteligente do que Ágata, mas não tinha dela a dureza pedregosa: Ágata-ágata, nunca lhe tinha ocorrido, os nomes afinal sempre querem dizer alguma coisa. Emma não percebia nada do trabalho de Timóteo, mas frequentemente batia à porta do seu laboratório, e ficava a olhar para ele durante horas com um olhar encantado. Na testa lisa de Emma, Timóteo viu um Timóteo maravilhoso. Via-se de busto, e de peito descoberto: tinha o tórax harmonioso que, para seu desgosto, nunca fora seu, um rosto apolíneo com fartos cabelos enleado por uma coroa de louros, um olhar ao mesmo tempo sereno, alegre e aquilino. Naquele momento, Timóteo percebeu que amava Emma com um amor intenso, doce e duradouro.
Distribuiu vários Spemet pelos amigos mais próximos. Notou que não havia duas imagens que coincidissem entre si: em resumo, não existia um verdadeiro Timóteo. Notou ainda que o Spemet possuía uma virtude incontestável: reforçava amizades antigas e sérias, e desfazia rapidamente as amizades assentes no hábito ou na convenção. No entanto, qualquer tentativa de lucro falhou: todos os vendedores concordavam que os clientes satisfeitos com a sua imagem reflectida na testa de amigos ou parentes eram muito poucos. As vendas seriam sempre baixas, mesmo reduzindo para metade o preço do produto. Timóteo patenteou o Spemet e esforçou -se durante anos na tentativa de manter viva a patente, tentou em vão vendê-la, e depois resignou-se: continuou a fabricar espelhos planos, aliás de grande qualidade, até à idade da reforma.»


O último Natal de guerra, de Primo Levi
*Tradução de Clara Rowland

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