Estética da Dança Clássica, de Frederico Lourenço

«O texto coreográfico não é o único texto que nos é dado ler ao vermos um bailado a ser dançado no palco. O bailado é, como a ópera, uma forma de arte sincrética, por natureza uma síntese artística onde confluem várias artes e várias poéticas; aliás, eu diria mesmo que o bailado é a arte interpoética por excelência. O cenário e os figurinos são a manifestação mais evidente daquilo a que eu gostaria de chamar a dimensão “pictórica” do bailado. E, acima de tudo, temos a música que, juntamente com a dança propriamente dita, é aquilo que contribui de forma mais decisiva para o impacto estético recebido quando vemos um bailado dançado no palco. Claro que a música é algo que nos chega através dos ouvidos: portanto o texto que os nossos ouvidos dão a ler à nossa mente constitui um texto que é percecionado de forma diferente relativamente ao processo de perceção que está em causa quando contemplamos um quadro num museu. Seja como for, assistir a um espetáculo de bailado convida-nos a ler três textos diferentes em simultâneo: texto coreográfico, texto musical e texto pictórico, sendo todos os três parte integrante da experiência de ver o bailado.

"Sommarlek/Um Verão de Amor (1951), Ingmar Bergman
Comecemos por voltar brevemente ao mais conhecido bailado clássico, "O Lago dos Cisnes", cuja coreografia de 1895, que ainda hoje vemos nas melhores produções, é praticamente coeva da música. A dimensão pictórica deste bailado – conquanto se trate de uma encenação em que os cisnes correspondem à ideia oitocentista de como se deveria representar um cisne no palco balético – também concorre no sentido de proporcionar uma impressão de sintonia geral, na medida em que os diversos textos que estão a ser oferecidos à nossa leitura estão excecionalmente bem ajustados entre si e afiguram-se-nos partes harmoniosas de um todo dotado de notável unidade estética. Pois "O Lago dos Cisnes" é todo ele retintamente fin-de-siècle: a música começou a ser composta por Tchaikovsky em 1875; o enredo foi, possivelmente, invenção do próprio compositor; o coreógrafo que fez a versão de 1895, que está na base do que vemos ainda hoje, estava bem sintonizado com o imaginário tchaikovskiano, pois colaborara já com o compositor na "Bela Adormecida". No que toca ao texto visual e pictórico, podemos imaginar que os cenários e figurinos vistos pelo público da estreia não seriam muito diferentes dos que vemos hoje em encenações tradicionais, portanto seriam muito “da sua época”.»


Estética da Dança Clássica, de Frederico Lourenço

Comments

Popular Posts