Que os mortos enterrem seus mortos, de Samuel Rawet

Lisboa à noite
(1969)
«Foi se entregando à cidade com o mesmo peso que carregava nas outras. Apenas mais displicente. Acordar ao meio-dia. Tomar café na Suíça do Rossio, subir a Avenida da Liberdade, passar a tarde lendo no Parque Eduardo VII, lendo ou remoendo ódios, comendo às sete da noite, voltando à pensão para um cochilo antes de sair aí pelas dez. Um cinema. Os bares. Casas de fado.
— O senhor é brasileiro, e se chama Isac? — A fala carregava nos erres, embora não muito forte. — Veio passear em Lisboa?
— Não! Coçar o saco!
O tipo alto, louro, robusto, à sua esquerda gargalhou forte, sempre a repetir, coçar o saco, coçar o saco, até que perguntou:
— O que é coçar o saco?
Aumentou a gargalhada ao receber a explicação, deu-lhe umas palmadas nas costas, apresentou-se como Johansen, holandês residente em Portugal há quase quinze anos.
— Nunca ouvi esta expressão por estes lados!
— Eu aprendi no Rio, não sei se em Portugal se usa, ainda vou perguntar.
O sueco voltou com a mulher, pediu duas bebidas e desejou happy New Year e merry Christmas a todo mundo, virou um pouco de seu uísque nos copos de cerveja de Isac e Johansen, eufórico, berrando, it's good, it's good, Portiugaaal, e arrastou de novo a mulher para a pista.
Um rápido silêncio enquanto bebiam a mistura, sorrindo.
— O senhor é brasileiro e se chama Isac?
— Judeu!
— Judeu?
— Brasileiro.
— Brasileiro?
Silêncio. Pausa. Johansen pede que lhe troquem o copo e tragam outra cerveja, duas, oferece uma a Isac. Ouve-se um mambo com os músicos fazendo coro. De repente um grito de mulher e uma bofetada no rapazote magricela que a espancara. Estava embriagado. O negro angolano veio da porta, e sem amarrotar a farda levantou-o pela gola e pelo cós das calças,
atravessou com ele o salão, e o que se ouviu depois foi apenas o choque de um corpo com o calçamento da rua. A orquestra continuou o mambo. Isac e Johansen bebiam.
— Judeu?
— Judeu!
— Brasileiro?
Tirou do bolso do blusão o maço de cigarros, ofereceu um a Johansen e este acendeu os dois.»

Que os mortos enterrem seus mortos, de Samuel Rawet
(Colecção Sabiá)
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Samuel Rawet (1929-1984) alfabetizado em hebraico na Polónia, chegou ao Brasil ainda criança, em 1936, fugindo, com a família, da perseguição nazi. Licenciado em Engenharia, em 1963 foi trabalhar para Brasília, onde colaborou na construção de vários edifícios da capital brasileira. Considerado um homem à margem, tanto na literatura quanto na sua opção sexual, a sua prosa revela um mundo atormentado, solitário e irónico.
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«O leitor que se aventurar pelos textos de Rawet logo perceberá que todos os caminhos se dissolvem e se refazem, numa prosa tão árdua quanto saborosa.»
Tatiana Salem Levy

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