Ó, de Nuno Ramos

«Vamos aos poucos nos esquecendo deles, dos nossos mortos, enquanto afundam na terra ou são queimados, ou mesmo atirados com pesos ao mar. Somem da nossa vista e transferimos às ogivas de concreto, aos mármores de suas lápides, aos emblemas de pedra ou dispostos na grama . crucifixos de madeira, hexágonos orientais, olhos de peixe, asas de falcão, dedos em figa - o que seria puro desespero. Construímos marcos e monumentos, pequenos oratórios à beira das estradas, cidadelas em miniatura para tentar esquecê-los. Fico pensando se cada casebre não será no fundo uma lápide antecipada, e se jamais um único tijolo foi assentado com propósito diferente deste - se tudo o que pareceria uso prático, abrigo contra as intempéries, interioridade aconchegante, não seria já a pedra da morte futura, que rugia de perto. Túmulos pavimentam o esquecimento, permitindo à vida que faça o que tem de fazer, seguir sem os mortos (o que nos incluirá a todos).
Pois alguma coisa de extremamente positivo na morte deve ser freado em nossos pensamentos e intenções, através das construções tumulares - as novas possibilidades que se abrem para os vivos, o espaço deixado por quem se ausenta, a comida que o morto já não come, o ar que não respira, o banho que não toma, os desejos que não pode mais realizar, a vida inteira que sequer imagina, nem cobiça. Estamos livres dessa tralha, melhor ainda: podemos nos apropriar da tralha do morto, dos instrumentos que preparou ao longo de seus dias, utilizando-os para nossos propósitos. São nossos, agora que morreu, cada um dos artifícios que criou, o jeito de falar, a antiga potência sexual, o modo de conter a raiva; é nossa também a sua casa e seu relógio, a roupa íntima e mesmo algumas das suas lembranças. um morto não pode nada. Talvez cobiçássemos a sua mulher, talvez estivéssemos de olho nos seus bens - mas em geral tudo se dá de modo mais sutil. É contra seus artifícios mais íntimos que nos batemos, isso que parece mais sólido do que a fundação de uma torre alta: o jeito de pronunciar os erres, certa forma de receber no rosto a luz do dia, o ângulo oblíquo de sua pálpebra, em suma, o património profundo de seu estar no mundo, que povoa verdadeiramente este mundo. É isso que a morte carrega, deixando um halo, um talho, uma mordida aos vivos, uma lacuna.»

"Ó", de Nuno Ramos
(Colecção Sabiá)
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Nuno Ramos nasceu em São Paulo, Brasil, em 1960.. É artista plástico e autor dos livros "Cujo" (1993) e "O pão do corvo" (2001), pela Editora 34, e "Ensaio Geral" (2007), pela Editora Globo. "Ó", publicado em 2008 pela Editora Iluminuras, recebeu o Prémio PT, em Novembro de 2009, e foi editado em Portugal pela Cotovia em 2010.
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«Olhando bem os textos que compõem este livro em sua unidade tão estrita quanto desatada não são contos, nem poemas em prosa, nem crônicas, nem ensaios, nem crítica, nem romance, nem autobiografia etc., sendo, no entanto, tudo isso e mais uma coisa incerta e não-sabida, que o leitor nomeará. Uma vasta fantasia antropológica? Uma crítica da percepção? Um De senectude precoce? Uma meditação sobre a ruína? Uma reflexão espectral da forma-mercadoria? O transe brasileiro no seu limite? Epifania negativa? Uma Carta ao pai, que dói e estala em todas as suas juntas? Uma tese de doutoramento impossível, apresentada a um Departamento de Filosofia do Além? De novo nenhuma dessas coisas e, ao mesmo tempo, todas elas e mais alguma etc.»
José Antonio Pasta

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