Dois irmãos, de Milton Hatoum

«Eu não sabia nada de mim, como vim ao mundo, de onde tinha vindo. A origem: as origens. Meu passado, de alguma forma palpitando na vida dos meus antepassados, nada disso eu sabia. Minha infância sem nenhum sinal de origem. É como esquecer uma criança dentro de um barco num rio deserto, até que uma das margens a acolhe. Anos depois, desconfiei: um dos gêmeos era meu pai. Domingas disfarçava quando eu tocava no assunto; deixava-me cheio de dúvida, talvez pensando que um dia eu pudesse descobrir a verdade. Eu sofria com o silêncio dela; nos nossos passeios, quando me acompanhava até o aviário da Matriz ou a beira do rio, começava uma frase mas logo interrompia e me olhava, aflita, vencida por uma fraqueza que coíbe a sinceridade. Muitas vezes ela ensaiou, mas titubeava, hesitava e acabava não dizendo. Quando eu fazia a pergunta, seu olhar logo me silenciava, e eram olhos tristes.
Uma vez, na noite de um sábado, enervada, enfadada pela rotina, ela quis sair de casa, da cidade. Pediu a Zana para passar o domingo fora. A patroa estranhou, mas consentiu, desde que Domingas não voltasse tarde. Foi a única vez que saí de Manaus com minha mãe. Ainda estava escuro quando ela chacoalhou minha rede; já tinha preparado o café da manhã e cantava baixinho uma canção.»

"Dois irmãos", de Milton Hatoum(Colecção Sabiá)
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Milton Hatoum (1952) nascido em Manaus, é autor dos romances "Relato de um certo Oriente" (1999), "Dois irmãos" (2000) e "Cinzas do Norte" (2005), publicados em Portugal pelos Livros Cotovia. Os três romances foram galardoados com o Prémio Jabuti, tendo "Cinzas do Norte" sido igualmente distinguido com os Prémios PT de Literatura Brasileira e APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte). A sua obra está também publicada nos Estados Unidos, Alemanha, Espanha, França, Grécia, Inglaterra, Itália, Holanda e Líbano.
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«"Dois irmãos" é uma história humana contada num mundo tornado real por um óptimo escritor. Hatoum é maravilhoso com cheiros e cores, com festas e rios, com incompreensões culturais e raivas.»

A. S. Byatt (The Guardian)

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