O Funeral do Doutor Mathurin, de Gustave Flaubert
Tradução de
Maria
Jorge Vilar de Figueiredo
Sentindo-se velho, e considerando que um cacho
demasiado maduro deixa de ter sabor, Mathurin decidiu morrer. Mas porquê e
como?
Andava pelos setenta anos. Ainda estava rijo,
apesar dos cabelos brancos, das costas curvadas e do nariz vermelho, em suma,
era uma bela figura de velho. Os olhos azuis, estranhamente puros e límpidos, e
uns dentes brancos e finos, sob uns lábios delgados e bem modelados, revelavam
um vigor gastronómico raro naquela idade, em que é mais frequente pensar-se em
recitar orações e em não ter medo do que em viver bem.
Na verdade, decidiu morrer porque estava doente e
porque, mais cedo ou mais tarde, teria de sair deste mundo. Achou que seria melhor
antecipar-se à morte do que sentir-se arrebatado por ela. Quando se inteirou
bem da sua situação, não ficou admirado nem aterrorizado, não chorou, não
gritou, não fez preces humildes nem exclamações empoladas, não se revelou
estóico, nem católico, nem psicólogo, quer dizer, não demonstrou orgulho, nem
credulidade, nem toleima; foi grande na morte, e o seu heroísmo superou o de
Epaminondas, de Aníbal, de Catão, de todos os capitães da Antiguidade, de todos
os mártires cristãos, do cavaleiro de Assas, de Luís XVI, de S. Luís, do Sr. de
Talleyrand, que morreu enfiado no seu roupão verde, e mesmo de Fieschi, que
ainda dizia piadas quando lhe cortaram a cabeça; enfim, de todos os que
morreram por uma convicção qualquer, por uma qualquer devoção, e dos que à última
hora se maquilharam para ficarem mais bonitos, embuçando-se na mortalha como
numa capa de teatro, capitães sublimes, republicanos estúpidos, mártires
heróicos e obstinados, reis destronados, heróis das galés. Sim, todas essas
coragens foram superadas por uma única coragem, todos esses mortos foram
eclipsados por um único morto, pelo doutor Mathurin, que não morreu por
convicção, nem por orgulho, nem por patriotismo, mas de uma pleurisia que há
oito dias o afligia e de uma indigestão que, na véspera, ofereceu a si próprio
– a primeira indigestão da sua vida, porque sabia comer.
Resignou-se, pois, como um herói, a franquear com
naturalidade o limiar da vida e a entrar no caixão de cabeça erguida; minto,
porque foi enterrado numa pipa. Não disse, como Catão: «Virtude, não passas de
uma palavra», nem como Gregório VII: «Fiz o bem e evitei a iniquidade, por isso
morro no exílio», nem como Jesus Cristo: «Meu pai, porque me abandonaste»;
morreu, dizendo simplesmente: «Adeus, divirtam-se!»
Um poeta romântico compraria um alqueire de carvão
de ferro e, fazendo maus versos e engolindo o fumo, passado uma hora estaria
morto; outro qualquer preferiria a algidez, e afogar-se-ia no Sena, em
Janeiro; outros ainda beberiam um horroroso licor que os faria vomitar antes de
voltarem a adormecer, já arrependidos da sua loucura; um mártir divertir-se-ia
a derramar chumbo na boca e a dar cabo do paladar; um republicano tentaria
matar o rei, falharia, e deixaria que lhe cortassem a cabeça; que pessoas
estranhas! Mathurin não morreu assim, a filosofia proibia-o de causar
sofrimento a si próprio.
Perguntar-me-ão porque lhe chamavam doutor.
Sabê-lo-ão um dia, porque posso muito bem dar-vo-lo a conhecer mais
pormenorizadamente, já que este não é mais do que o último capítulo de uma
longa obra que deve tornar-me imortal, como todos as que são inéditas.
Contar-lhes-ei as suas viagens, analisarei todos os livros que ele escreveu,
farei um volume de notas sobre os seus comentários e um apêndice de papel em
branco e de pontos de exclamação às suas obras de ciência, porque era um dos
sábios mais sábios em todas as ciências possíveis. Mas a sua modéstia
ultrapassava todos os seus conhecimentos, e nem se acreditava que soubesse ler;
dava erros, é certo, mas sabia hebreu e muitas outras coisas. Além do mais,
conhecia a vida, conhecia a fundo o coração dos homens, e não havia meio de se
escapar ao juízo do seu olhar penetrante e sagaz; quando erguia a cabeça,
baixava os olhos, e nos olhava de soslaio, sorrindo, era como se uma sonda
magnética nos entrasse na alma e vasculhasse em todos os seus recantos.
Creio que tinha na cabeça aquela
luneta dos contos árabes com que o olhar trespassava as paredes, isto é, creio
que ele nos despojava de roupas e de trejeitos, de todo o verniz de virtude que
colocamos sobre as rugas, de todas as muletas que nos amparam, de todos os
tacões que nos fazem parecer mais altos; aos homens arrancava a presunção, às
mulheres o pudor, aos heróis a grandeza, ao poeta a afectação, e às mãos sujas
as luvas brancas. Mal um homem passava diante dele, dizia duas palavras, dava
dois passos e fazia o menor gesto, ele entregava-no-lo nu, sem roupas e
tiritando ao vento. Já algumas vezes, durante um espectáculo, à luz frouxa do
lustre de mil velas, quando o público se agita palpitante, as mulheres
ataviadas batem palmas, e por todo o lado há sorrisos em lábios cor de rosa,
diamantes que brilham, vestes brancas, riqueza, alegria, fausto, já alguma
vezes imaginaram toda aquela luz transformada em sombra, aquele ruído tornado
silêncio e toda aquela vida convertida em nada, e, em vez de todos aqueles
seres decotados, de peitos ofegantes, de cabelos negros entrançados sobre peles
brancas, esqueletos que hão-de estar por muito tempo sobre a terra onde
caminharam, reunidos assim num espectáculo para continuarem a admirar-se, para
assistirem a uma comédia que não tem nome, que eles próprios representam, de
que são os actores eternos e imóveis?
Mathurin fazia mais ou menos o
mesmo, porque através da roupa ele via a pele, via a carne sob a epiderme, via
a medula no osso, e de tudo isso exumava farrapos ensanguentados, corações
podres, e muitas vezes, em corpos sãos, descobria uma horrível gangrena.
Essa perspicácia, que fez os
grandes políticos, os grandes moralistas, os grandes poetas, só serviria para o
tornar feliz; o que já é alguma coisa, quando se sabe que nem Richelieu, nem
Molière nem Shakespeare o foram. Ele tinha vivido, guiado molemente pelos seus
sentidos, sem infelicidade nem felicidade, sem esforço, sem paixão e sem
virtude, essas duas pedras que desgastam as lâminas de dois gumes. O seu
coração era uma cuba onde nada de demasiado ardente tinha fermentado e que ele
fechara, mal a tinha considerado suficientemente cheia, deixando ainda algum
lugar para o vazio, para a paz. Não era pois poeta nem padre, nem casara, tinha
a sorte de ser bastardo, os amigos eram poucos e a sua adega estava bem
fornecida: não tinha amantes que o provocassem, nem cão que o mordesse; tinha
uma excelente saúde e um paladar extremamente delicado. Mas tenho de falar-lhes
da sua morte.
Mandou chamar os seus discípulos
(tinha dois) e disse-lhes que ia morrer, que estava farto de estar doente e de
ter passado um dia inteiro a dieta.
Era a estação dourada dos trigos
maduros; o jasmim, já branco, perfuma a folhagem do caramanchão, começa-se a
arquear a vinha, as uvas pendem em cachos sobre as estacas, o rouxinol canta na
sebe, ouvem-se risos de crianças nos bosques, os fenos já foram ceifados.
Oh! Outrora, as ninfas vinham
dançar na planície e com as flores dos prados faziam-se grinaldas, a fonte
murmurava um arrulho fresco e apaixonado, as pombas iam voar sobre as tílias.
De manhã, ao nascer do sol, o horizonte é de um azul vaporoso e o vale derrama
sobre as colinas um perfume fresco, ainda húmido dos beijos da noite e do
orvalho das flores.
Mathurin, deitado há vários
dias, dormia na sua cama. Que sonhos eram os seus? Sem dúvida como a sua vida,
calmos e puros. Através da gelosia, a janela aberta deixava entrar raios de
sol, a latada, trepando ao longo da parede cinzenta, unia os seus frutos
maduros ao emaranhado dos ramos da clematite; o galo cantava na capoeira, os
ceifeiros descansavam à sombra das grandes nogueiras de troncos atapetados de
musgo. Não longe, sob os olmeiros, havia uma almofada de relva onde muitas vezes
dormiam a sesta, e cuja densa verdura só era maculada por íris e papoilas. Era
aí que, deitados de barriga para baixo ou sentados e conversando, bebiam juntos
enquanto a cigarra cantava, os insectos zumbiam nos raios de sol, e as folhas
remexiam sob o hálito quente das noites de Verão.
Tudo era paz, calma e alegria
tranquila. Era ali que num total esquecimento do mundo, viviam, inactivos,
inúteis, felizes. Assim, enquanto os homens trabalhavam, e a sociedade vivia
com as suas leis e a sua organização múltipla, enquanto os soldados se deixavam
matar e os intriguistas se agitavam, eles, eles bebiam, dormiam. Acusem-nos de
egoísmo, falem de dever, de moral, ou de dedicação; digam mais uma vez que
devemos consagrar-nos ao país, à sociedade; repisem bem a ideia de uma obra
comum, continuem a cantar esse magnífico achado do plano do universo. Não
impedirão que haja pessoas sábias e pessoas egoístas, que com a sua vida
ignóbil têm mais bom senso do que vós com as vossas sublimes virtudes.
Ó homens, vós que andais pelas
cidades, que fazeis as revoluções, que derrubais os tronos, que fazeis mover o
mundo, e que levantais muita poeira na estrada batida do género humano para que
as vossas frontes minúsculas sejam notadas, pergunto-vos se a vossa algazarra,
os vossos triunfos e as vossas armas, as vossas máquinas e o vosso
charlatanismo, as vossas virtudes, se tudo isso vale mais que uma vida calma e
tranquila, sem outro fumo senão o de um cachimbo, sem outro fastio senão o de
ter comido demais.
Assim viviam, e enquanto o
sangue corria nas guerras civis, enquanto o leme do Estado era disputado por
piratas e ineptos, e se partia na tempestade, enquanto os impérios se
desmoronavam, enquanto se assassinava e se vivia, enquanto se escreviam livros
sobre a virtude, e o Estado só vivia da magnificência dos vícios, enquanto se
concediam prémios de moral e nada havia de belo senão os grandes crimes, para
eles o sol continuava a fazer amadurecer as uvas, as árvores continuavam a ter
as mesmas folhas verdes, continuavam a dormir sobre o musgo dos bosques, e
refrescavam o seu vinho na água dos lagos.
O mundo vivia longe deles, e o
ruído dos seus gritos não chegava até aos seus pés, que uma palavra trazida das
cidades ter-lhes-ia perturbado a calma dos corações; nenhuma boca profana vinha
beber àquela taça de invulgar felicidade, não recebiam livros, nem jornais, nem
cartas, a biblioteca comum era constituída pelas obras de Horácio, de Rabelais
– será preciso dizer que havia todas as edições de Brillat-Savarin e do Cuisinier? – Nem um pouco de política,
nem um fragmento de controvérsia, de filosofia ou de história, nenhuma das
frivolidades sérias com que os homens se divertem; diante deles não tinham
sempre a Natureza e o vinho? O que lhes faltava? Indiquem-me alguma coisa que
supere a beleza de um belo campo banhado de sol e a voluptuosidade de uma
ânfora cheia de um vinho límpido e espumoso. Previno-os de que a resposta que
vão dar os teria feito rir de compaixão.
Entretanto, Mathurin acordou:
eles estavam ali, aos pés da cama; disse-lhes:
– Vamos beber, por vocês e por
mim! Três copos e umas garrafas! Estou doente, já não há remédio, quero morrer,
mas antes tenho sede, muita sede… Não tenho nenhuma sede de religião, nem
nenhuma fome de hóstia, bebamos pois para nos despedirmos.
Trouxeram garrafas de todas as
espécies e das melhores, o vinho correu a rodos durante horas, e antes da
madrugada estavam bêbados.
Primeiro foi uma embriaguez
calma e lógica, uma embriaguez suave que se foi prolongando lentamente.
Mathurin sentia a vida escapar-se e, como Séneca, que mandou que lhe abrissem
as veias e o metessem numa banheira, antes de morrer mergulhou num banho de
excelente vinho, banhou o seu coração numa beatitude sem nome, e a sua alma foi
direita ao Senhor, como um odre cheio de felicidade e de licor.
Quando o sol se pôs, já os três
tinham bebido quinze garrafas de beaune
(primeira qualidade, 1834) e feito um curso completo de teodiceia e de
metafísica.
Foi nessa última conversa que
Mathurin resumiu toda a sua ciência.
Viu o sol baixar para sempre e
desaparecer por detrás das colinas; então, levantando-se e olhando para o
poente, contemplou o campo que adormecia ao crepúsculo. Os rebanhos desciam, e
as campainhas das vacas soavam nas clareiras, as flores iam fechar as suas
corolas, e alguns raios de Sol desenhavam ainda sobre a terra círculos
luminosos e fugazes; levantou-se a brisa da noite, e o seu sopro fez com que as
folhas das vinhas batessem na caniçada; depois, chegou até eles e
refrescou-lhes as faces ardentes.
– Adeus, disse Mathurin, adeus! amanhã
já não verei este sol, cujos raios iluminarão o meu túmulo, depois as suas
ruínas, sem nunca chegar até mim. As ondas continuarão a mover-se, e eu não
ouvirei o seu murmúrio. Afinal de contas, vivi; porque não hei-de morrer? A
vida é um rio, a minha correu por entre pradarias cheias de flores, sob um céu
puro, longe das tempestades e das nuvens, estou na foz, lanço-me no Oceano, no
infinito; dentro em breve, misturado ao tudo imenso e sem limites, já não terei
consciência do meu nada. Será que o homem é algo mais que um simples grão de
sal do Oceano ou uma bolha de espuma sobre o tonel do Eleitor?
Adeus, pois, ventos da tarde,
que soprais sobre as rosas inclinadas, sobre as trémulas folhas dos bosques
adormecidos, quando as trevas caem; palpitarão ainda por muito tempo as folhas
das urtigas que hão-de crescer sobre os restos devastados do meu túmulo.
Outrora, quando passava, a rir, perto dos cemitérios, e se ouvia a minha voz
cantando ao longo do muro, quando o mocho andava de asa caída sobre os
campanários, e os ciprestes murmuravam os suspiros dos mortos, lançava um olhar
calmo sobre aquelas pedras que, juntamente com os restos dos cadáveres,
encerravam toda a eternidade; para mim era um outro mundo, onde o meu próprio
pensamento mal me podia transportar, no infinito de um vago devaneio.
Agora, os meus dedos trémulos
batem à porta desse outro mundo, que vai abrir-se, porque é com um braço de
cólera, um braço desesperado que lhes removo a aldraba.
Que venha a morte, que venha!
Levar-me-á adormecido na sua mortalha, e eu irei continuar o sonho eterno sob a
erva macia da Primavera ou sob a neve dos invernos, tanto faz! e o meu último
sorriso será para ela, dar-lhe-ei beijos cheios de vinho, um coração cheio da
vida e que não que mais vida, um coração bêbado, que não bate.
«A soberana beleza, a soberana
felicidade não será o sono? e eu vou dormir, dormir sem acordar, por muito
tempo, para sempre. Os mortos…»
Ao pronunciar esta erudita
frase, deteve-se para beber e depois continuou:
– A vida é um festim. Há os que
morrem de repente, empanzinados, escorregando para debaixo da mesa; outros,
aqueles que sobre a toalha só derramam vinho e não vertem lágrimas, sujam-na de
sangue e de nódoas; outros ainda, aturdidos com as luzes, com o ruído, enojados
com o cheiro penetrante dos manjares, incomodados com o bulício, baixam a
cabeça e desatam a chorar. Felizes os sábios, que comem demoradamente, afastam
os convivas insaciáveis e os criados impudentes que os importunam com pedidos,
e que, no último dia, à sobremesa, quando uns dormem e outros estão embriagados
desde que o primeiro prato foi servido, quando já muitos se foram embora
doentes, podem beber finalmente os vinhos mais finos, saborear os frutos mais
maduros, gozar lentamente os últimos fins da orgia, esvaziar o resto, de um
grande trago, apagar as velas, e morrer!
Como a água límpida que a ninfa
de mármore deixa cair murmurando da sua concha de alabastro, continuou a falar
assim durante muito tempo, com aquela voz grave e voluptuosa, cheia da melancolia
alegre que se tem nos momentos supremos, e, como a água límpida, a sua alma
transbordava dos seus lábios.
A noite chegara, pura,
apaixonada, uma noite azul, luzente de estrelas; nem um som, a não ser o da voz
de Mathurin falando demoradamente aos seus amigos. Eles escutavam-no,
olhando-o. Sentado sobre a cama, os seus olhos começavam a fechar-se, a chama
branca das velas remexia ao vento, a sombra, que ela raiava, tremia sobre o
lambril, o vinho espumava nos copos e a embriaguez cintilava nas faces; sentado
à beira do túmulo, Mathurin tinha aí colocado a sua garrafa, e só quando a
tiver bebido é que o seu túmulo se fechará.
Que venha, pois, essa mole
languidez dos sentidos, que embriaga até á alma; que ela o embale nessa
lassidão infinita, que ele adormeça sonhando com alegrias infindas, dizendo
também nunc pulsanda tellus; que as
ninfas antigas lancem as suas rosas perfumadas sobre os lençóis tingidos de
vermelho, a sua mortalha, e venham dançar diante dele uma graciosa dança de
roda, e, para despedida, que venham todas as belezas com que o coração sonha, o
encanto dos primeiros amores, a voluptuosidade dos beijos mais longos e dos
olhares mais suaves; que o céu se torne mais estrelado e a noite seja mais
límpida; que venham luzes do céu iluminar as alegrias desta agonia, tornar mais
fresco e perfumado o vento, que vozes se elevem por cima da erva e cantem,
enquanto ele bebe as últimas gotas da vida; que os seus olhos fechados
estremeçam como sob o mais terno beijo; que, para este homem, tudo seja
felicidade até à morte, paz até ao nada; que a eternidade não seja senão um
leito que o embale no decorrer dos séculos!
Mas, olhem para eles. Jacques
levantou-se e fechou a janela; o vento chegava até Mathurin, que começava a
bater os dentes; aproximaram mais da cama a mesa redonda, o fumo dos seus
cachimbos sobe até ao tecto e espalha-se em nuvens azuis, ouvem-se os seus
copos chocar e as suas palavras; o vinho cai no soalho, e eles praguejam,
troçam; vai ser horrível, vão morder-se. Não tenham medo, o que eles mordem é
uma galinha gorda, e as trufas que se escapam dos seus lábios vermelhos rolam
pelo chão.
Mathurin fala de política.
– A democracia é uma boa coisa
para as pessoas pobres e grosseiras, talvez um dia se consiga, ai de mim, que
todos os homens possam beber zurrapa. A partir desse dia, deixar-se-á de beber
por fidelidade. Se os nobres, cuja tirania (tinham cozinheiros tão bons!)…
estava eu na Revolução… Pobres monges! Cultivavam tão bem a vinha! Então
Robespierre… Oh! que tipo tão esquisito, que comia vaca em casa de um
marceneiro, que se conservou puro no poder, e que tem a mais execrável
reputação… bem merecida! Se tivesse tido um pouco mais de espírito, se tivesse
arruinado o Estado, mantido amantes com os dinheiros públicos, bebido vinho em
vez de derramar sangue, seria um homem justamente, dignamente virtuoso… Dizia
pois que Fourier… um texto bem bonito sobre a arte culinária… o que não impede
que Washington fosse um grande homem, e Montyon algo de sobrehumano, de divino,
quase de super-estúpido; seria preciso definir a virtude antes da entrega dos
prémios. Concordo que todo aquele que desse uma boa definição e que, antecipadamente,
a tivesse demonstrado por qualidades bem distintas, nitidamente expressas, em
suma, positivas, mereceria um prémio extraordinário; ter-lhe-ia sido necessário
determinar até que ponto o orgulho é um elemento de grandeza, a ingenuidade é
um elemento da beneficência, marcar os limites precisos do interesse e da
vaidade; teria sido necessário citar exemplos, fazer compreender três palavras
incompreensíveis: moralidade, liberdade e dever, e mostrar (o que teria sido o
sublime da proposição e poderia inserir-se num período erudito) como os homens
são livres mesmo tendo deveres, como podem ter deveres, já que são livres;
dissertar também demoradamente, na qualidade de acessório e de divagação
favorável, sobre a virtude recompensada e o vício punido; afirmar-se-ia
historicamente que Alexandre, Sésostris, César, Tibério, Luís XI, Rabelais,
Byron, Napoleão e o marquês de Sade eram uns imbecis, e que Mardochée, Catão,
Bruto, Vespasiano, Eduardo o Confessor, Luís XII, Lafayette, Montyon, o homem
da capa azul, e Parmentier, e Poivre, eram uns grandes homens, uns grandes
génios, uns Deuses, uns seres…
Mathurin desatou a rir,
espirrando, o seu rosto ia-se dilatando, todos os seus traços se franziam num
sorriso diabólico, os olhos brilhavam-lhe, um espasmo sacudia-lhe os ombros;
continuou:
– Viva a filantropia! – um copo
de vinho bem fresco! – a história é acima de tudo uma ciência moral, mais ou
menos como a visão de uma casa de putas e a de um cadafalso cheio de sangue;
todavia, os factos provam que corre tudo pelo melhor. Assim os hebreus,
assassinados pelos seus vencedores, cantavam salmos que nós admiramos como
poesia lírica, os cristãos, ao serem degolados, não suspeitavam de que também
estavam a criar uma poesia, uma sociedade pura, sem mácula; Jesus Cristo, morto
e descendo da cruz, fornece, ao cabo de dezasseis séculos, o tema para um belo
quadro; as Cruzadas, a Reforma, 93, a filosofia, a filantropia que alimenta os
homens com batatas e as vacas com beterrabas, tudo isso foi sendo cada vez
melhor; a pólvora, a guilhotina, os barcos a vapor e as tartes à la creme são invenções úteis, confessem, quase tão úteis
como o trovão; há homens reduzidos ao estado de Terras-Novas, e que estão
encarregados de dar a vida àqueles que querem perdê-la, cortam-nos a planta dos
pés para nos fazerem abrir os olhos, e enchem-nos de murros para nos tornarem
felizes; como já não se pode andar, levam-nos para o hospital onde se morre de
fome, e depois de nós o nosso cadáver ainda serve para se dizer asneiras acerca
de cada uma das fibras do nosso corpo e para alimentar cachorros criados para
experiências. Acreditem firmemente numa eterna Providência e no senso comum das
nações. Quantos homens acreditam nisso?... O bordeaux serve-se sempre aquecido… os alimentos vão, por ordem, dos
mais substanciais aos mais leves, e as bebidas vão das mais temperadas às mais
fumosas e às mais perfumadas… se quiserem que uma calhandra seja boa, cortem-na
pelo meio.
– E a Providência, mestre?
– Sim, creio que o sol faz
amadurecer as uvas, e que uma perna de carneiro marinada é uma delícia…; nem
tudo acabou e há duas ciências eternas: a filosofia e a gastronomia. O que
importa é saber se a alma vai reunir-se à essência universal, ou se permanece à
parte, como indivíduo, e para onde vai, para que país… e como se pode conservar
por muito tempo o bourgogne… Acho que
há um processo ainda melhor para se preparar a lagosta… e um novo plano de
educação, mas a educação, no aspecto moral, nunca aperfeiçoa a não ser os cães.
Durante anos e anos acreditei na água de Seltz e na perfectibilidade humana,
agora o que me convence é o absinto; é como a vida: os que não a sabem beber
fazem caretas.
– Então nega a imortalidade da
alma?
– Um copo de vinho!
– A recompensa e o castigo?
– Que sabor! disse Mathurin,
depois de ter bebido e cerrando os lábios sobre os dentes.
– E o que pensa do plano do
universo?
– E tu, o que pensas tu da
estrela de Sírius? pensas conhecer melhor os homens do que os habitantes da
lua? a própria história e uma mentira real.
– O que é que isso significa?
– Significa que os factos
mentem, que são e já não são, que os homens vivem e morrem, que o ser e o nada
são duas falsidades numa só, que é o sempre.
– Não compreendo, mestre.
– E eu, ainda menos, respondeu
Mathurin.
– Isso é muito profundo, – disse
Jacques, já quase completamente embriagado, – e há nessa última palavra uma
grande subtileza.
– Entre mim e vocês os dois,
entre um homem e um grão de areia, entre ontem e hoje, entre esta hora e a que
está para vir, não existem espaços que o pensamento não é capaz de medir e
mundos de perfeitos nadas que os preenchem? Poderá resumir-se o próprio
pensamento? Sentes-te dormir? e por vezes, quando o teu espírito se eleva e
escapa do seu invólucro, não pensas que já não existes, que o teu corpo caiu,
que caminhas no infinito, como o sol, que rolas num abismo, como o Oceano sobre
o seu leito de areia, e que o teu corpo, essa coisa atormentada que carregas contigo, já deixou de ser o teu
corpo e não passa de uma vela, fustigada por uma tempestade? Começaste a
duvidar da Natureza, da própria sensação? Pega num grão de areia, há nele um
abismo a cavar durante séculos; apalpa-te bem para veres se existes; e quando
souberes que existes, terás um infinito que não explorarás.
Estavam bêbados, não
compreendiam um discurso metafísico tão longo e tão fastidioso.
– Isso significa que o homem vê
tão claro dentro dele e à sua volta como se tivesse caído morto de bêbado
dentro de uma pipa de vinho maior que o Atlântico. Afirmar depois que há algo
de belo na criação, querer fazer um concerto de elogios com todos os gritos de
maldição que soam, todos os soluços que explodem, as ruínas que desabam, é
filosofia da moral, dizem eles; que rica filosofia! Ergam-me uma pirâmide de
cabeças de mortos e elogiem a vida! cantem a beleza das flores, sentados numa
estrumeira! exaltem a calma e o murmúrio das ondas, quando a água salgada entra
pelas escotilhas e o navio naufraga: o que os olhos podem abarcar é o fragor
horrível de uma agonia eterna. Vejam como a cascata que cai aos borbotões da
montanha arrasta consigo os restos da planície, a folhagem ainda verde da
floresta destruída pelos ventos, a lama dos ribeiros, o sangue derramado, os
carros que avançavam; é algo de belo e de soberbo. Aproximem-se, escutem o
horrível estertor dessa agonia sem nome, ergam os olhos, que beleza! que
horror! que abismo! Vá, vasculhem, desentulhem as ruínas sem nome, e sob essas
ruínas haverá mais outras, sempre; passem por cima de vinte gerações de mortos
empilhados uns sobre os outros, procurem impérios perdidos sob a areia do
deserto, e palácios de antes do dilúvio sob o Oceano, talvez encontrem mais
tempos desconhecidos, uma outra história, um outro mundo, outros séculos
titânicos, outras calamidades, outros desastres, ruínas fumegantes, sangue
coagulado sobre a terra, ossadas esmagadas sob os passos.
Parou, ofegando, e tirou o
barrete de algodão; os cabelos, molhados de suor, estavam colados em longas
madeixas sobre a testa pálida. Levanta-se e olha à sua volta, com os olhos
azuis baços como o chumbo, nenhum sentimento humano cintila nas suas pupilas, é
já como que a impassibilidade do túmulo. Assim, colocado sobre o seu leito de
morte e em plena orgia, calmo entre o túmulo e a devassidão, parecia ser a
estátua do escárnio, com uma cuba por pedestal e olhando a morte de frente.
Agora, naquela embriaguez
derradeira, tudo se agita, tudo gira e vacila; o mundo dança à cabeceira do
leito de morte de Mathurin. À calma feliz das primeiras libações sucedem-se a
febre e as suas quentes pulsações, febre que vai aumentando, que se vê palpitar
sob a pele, nas veias azuis inchadas; os corações batem, eles sopram, ouve-se o
ruído dos seus hálitos e o estalar da cama que cede aos bruscos estertores do
moribundo.
Há nos seus corações uma força
que vive, uma cólera que eles sentem ao subir gradualmente do coração à cabeça;
os seus gestos são irregulares, a voz estridente, os dentes batem nos copos;
bebem, bebem sempre, dissertando, filosofando, procurando a verdade no fundo do
copo, a felicidade na embriaguez e a eternidade na morte. Esta, só Mathurin a
encontrou.
Nessa noite, passou-se algo de
monstruoso e de magnífico entre os três homens. Se os tivessem visto consumir
assim tudo, esgotar tudo, falar dos sabores das mais puras voluptuosidades, dos
perfumes da virtude e da embriaguez de todas as quimeras do coração, e da
política, e da moral, e da religião… tudo passou na frente deles e foi saudado
com um riso grotesco e com uma careta que lhes meteu medo; a metafísica foi
tratada a fundo num quarto de hora, e trataram de moral embebedando-se com um
décimo segundo copo. E porque não? se isso os escandaliza, não continuem, eu
narro apenas os factos. E vou continuar, enumerando epicamente todas as
garrafas vazias.
Agora é o ponche que flameja e
fervilha. Como a mão que o mexe está trémula, as chamas que se escapam da
colher caem sobre os lençóis, sobre a mesa, sobre o chão, e ateiam outros
tantos fogos-fátuos que se apagam e voltam a acender-se. Não houve sangue com o
ponche, como acontece nos romances de péssima categoria e nos cabarés onde só
se vende mau vinho, e onde o povinho vai embebedar-se com aguardente de cidra.
Houve alarido, porque eles
vociferavam horrivelmente; não cantam, conversam, falam alto, gritam, riem sem
saber porquê, o vinho fá-los rir. E a sua alma cede à excitação nervosa, é
arrastada pelo turbilhão, a orgia ferve, as velas apagaram-se, o ponche arde
por todo o lado. Mathurin. Ofegante, dá um salto sobre a cama manchada de
vinho.
– Vá! Continuemos, mais… sim,
mais! mais kirsch, mais rum, mais
água e mais kirsch, mais… peguem-lhe
fogo, que arda e seja quente, a ferver… parte a garrafa, bebamos!
E quando acabou, ergueu a
cabeça, altivo, e olhou para os outros dois, com olhos fixos, o pescoço
esticado, a boca sorridente; tinha a camisa encharcada em aguardente, estava
coberto de suor, a agonia aproximava-se. Um fumo pesado subia até ao tecto, deu
uma hora, o tempo estava bom, a lua brilhava no céu por entre a bruma, a colina
verde, prateada pelo luar, estava calma e dormente, tudo dormia. Recomeçaram a
beber e foi ainda pior: era um frenesim, um furor de demónios embriagados.
Já não há copos nem taças;
agora, os seus dedos apertam a garrafa até quase a partirem; estendidos nas
cadeiras, com as pernas esticadas e numa rigidez convulsiva, a cabeça inclinada
para trás, o pescoço curvado, os olhos no céu, o gargalo na boca, o vinho
continua a escorrer nas suas gargantas; depois é a embriaguez total, bebem da
garrafa e ficam cheios, o vinho entra-lhes no sangue e fá-lo bater loucamente
nas veias; estão imóveis, olham-se com uns olhos muito abertos e não se vêem.
Mathurin quer voltar-se e suspira; os lençóis enrugados entram-lhe na carne,
sente as pernas pesadas e os rins cansados; está a morrer e continua a beber,
não perde um instante, um minuto; convertido ao cinismo, no cinismo se moverá
com todas as suas forças, e nele mergulhará e morrerá, no último espasmo da sua
orgia sublime.
Com a cabeça caída para um lado,
o corpo desfalecido, remexe os lábios maquinalmente, vivamente, sem articular
uma só palavra; se tivesse os olhos fechados, julgá-lo-iam morto; não se
distingue nada. Ouve-se o arquejar do seu peito, e ele bate-lhe com os punhos;
pega ainda numa pequena garrafa e quer bebê-la.
O padre entra e ele atira-lha à
cara, suja a sobrepeliz branca, faz cair o cálice, aterroriza o menino do coro,
pega noutra e leva-a à boca, soltando um uivo de fera; contorce-se como uma
serpente, remexe-se, grita, morde os lençóis, as unhas agarram-se-lhe à madeira
da cama; depois tudo se acalma, ele volta a estender-se, fala baixo ao ouvido
dos discípulos e morre suavemente, feliz, depois de lhes ter comunicado as suas
últimas vontades e os seus caprichos de além túmulo.
Eles obedeceram. No dia
seguinte, à tardinha, tiram-no da cama, enrolam-no nos lençóis vermelhos, pegam
nele: Jacques, pela cabeça, André, pelos pés – e vão-se embora.
Descem as escadas, atravessam o
pátio, o quintal cercado de macieiras, e ei-los na estrada principal, levando o
amigo para um cemitério escolhido.
Era um fim de tarde de domingo,
um dia de festa, um belo início de noite; toda a gente tinha saído, as mulheres
com fitas cor-de-rosa e azuis, os homens de calças brancas; nas imediações da
cidade, tiveram de se desviar das carroças, das carruagens, dos cavalos, da
multidão, da barafunda de canalhas e de pessoas honestas que constituíam o
préstimo de Mathurin, porque nunca nenhum rei teve tanta gente no funeral.
Pisavam-se uns aos outros, acotovelavam-se e praguejavam, queriam ver, ver a
todo o custo (e poucos sabiam o quê), uns por curiosidade, outros levados pelos
vizinhos; alguns estavam escandalizados, vermelhos de cólera, furiosos; também
havia quem se risse.
A um dado momento (não se soube
porquê), a multidão deteve-se, como acontece nas procissões quando o padre pára
num dos altares situados ao longo do percurso; eles acabavam de entrar num
cabaré. Teria o morto ressuscitado e iam dar-lhe água com açúcar? Os filósofos
bebiam um copo e um terceiro foi derramado sobre a cabeça de Mathurin. Pareceu
abrir os olhos; não, estava morto.
Ainda foi pior quando chegaram
aos arredores; entram em todas as tabernas, nos cabarés, nos cafés; a multidão
está em alvoroço, as carruagens já não podem circular, pisam-se patas de cães,
que mordem, e os calos dos cidadãos, que se enfadam; e a multidão avança,
agita-se, anda de cabaré em cabaré, afasta-se para deixar passar Mathurin
transportado pelos dois discípulos, admiram-no, porque não? Vêem-nos abrir-lhe
os lábios e introduzir-lhe líquido na boca, o maxilar volta a fechar-se, os
dentes tocam-se e batem inutilmente, a garganta engole, e eles continuam.
Teria sido atropelado? ter-se-ia
suicidado? seria um mártir do governo? vítima de um assassínio? ter-se-ia
afogado? asfixiado? teria morrido de amor? de indigestão? Um homem sensível
abriu logo uma subscrição, e ficou com o dinheiro, um moralista fez uma
dissertação sobre funerais e provou que as pessoas deviam ser enterradas porque
até as toupeiras se enterram; falou em nome da moral ultrajada; primeiro
escutaram-no, porque o seu discurso começava com injúrias, mas logo lhe viraram
as costas, e só um homem o olhava atentamente: era surdo. Houve um republicano
que propôs que se amotinasse o povo contra o rei, porque o pão estava demasiado
caro e aquele homem acabava de morrer de fome; falou tão baixo que ninguém o
ouviu.
Na cidade ainda foi pior, e a
barafunda foi tanta que entraram num café para escapar ao entusiasmo popular. Os
clientes ficaram muito admirados ao verem aparecer um morto no meio deles; deitaram-no
sobre uma mesa de mármore, com dominós; Jacques e André sentaram-se na outra e
cumpriram as instruções do doutor. As pessoas apinham-se à volta deles e
fazem-lhes perguntas: de onde vêm? o que é aquilo? porquê? – nada de resposta.
– Então aposto que são padres
indianos, e é assim que eles enterram a gente deles.
– Está enganado, são Turcos!
– Mas bebem vinho.
– Que rito será este? exclama um
historiador.
– Mas é abominável! é horrível! –
gritavam, uivavam.
– Que profanação! que horror!
diz um ateu.
Um ajudante de carrasco achou
que era repugnante e um ladrão afirmou que era imoral.
A partida de bilhar foi
interrompida, bem como a política de café, um sapateiro suspendeu a sua
dissertação sobre a educação, e um poeta elegíaco, afundado em vinho branco e
repleto de ostras, ousou arriscar a palavra «ignóbil».
Foi um burburinho, um «oh!» de
indignação; muitos ficaram furiosos porque os criados tardavam a trazer as
bandejas; os homens de letras, que liam as suas obras nas revistas, ergueram as
cabeças e praguejaram, sem mesmo falarem francês. E os jornalistas! que cólera!
que santa indignação a desses palhaços literários! Houve vinte jornais que se
apoderaram do acontecimento, e cada um fez sobre o assunto quinze artigos de
oito colunas com suplementos, afixaram-nos nas paredes, aplaudiam-nos,
criticavam-nos, faziam a crítica da sua crítica e elogios ao seu elogio;
voltou-se ao Evangelho, à moral e à religião, sem se ter lido o primeiro,
praticado a segunda e acreditado na terceira; para eles foi uma sorte, porque
tinham tido a coragem de dizer, a doze, tolices a dois, e um deles foi mesmo ao
ponto de dar uma bofetada a um morto. Que ditirambo sobre a literatura, a
corrupção dos romances, a decadência do gosto, a imoralidade dos pobres poetas
que têm sucesso! Que felicidade para toda a gente uma aventura daquelas, de que
se tiraram tantas coisas belas, e, ainda por cima, um vaudeville e um melodrama, um conto moral e um romance fantástico!
Entretanto eles tinham saído e
atravessado a cidade, por entre a multidão escandalizada e satisfeita. Quando caiu
a noite, estavam fora da cidade, e adormeceram os três (sic) junto de uma meda de feno, no campo.
No Verão as noites são curtas;
nasceu o dia e os seus primeiros alvores foram surgindo no horizonte; e a lua
empalideceu e desapareceu na bruma cinzenta. Aquela frescura da manhã, cheia de
orvalho e do perfume dos fenos, despertou-os, puseram-se de novo a caminho
porque ainda tinham uma boa légua a percorrer, ao longo do ribeiro, entre as
ervas, por um carreiro serpenteando como a água. À esquerda, havia o bosque, e
as suas folhas molhadas brilhavam sob os raios de sol, que passavam entre os
pés das bétulas, sobre o musgo; a faia agitava a sua folhagem de prata, os
choupos remexiam lentamente as cabeças erguidas, os pássaros já chilreavam,
cantavam, deixando esvoaçar as suas notas claras; o rio corria do outro lado,
junto a uns casebres de colmo, ao longo das muralhas, e via-se as árvores
deixar cair cachos de folhas e frutos maduros.
Era a planície e o bosque,
ouvia-se um vago ruído de carros nos caminhos, e o que passos faziam sobre as
ervas pisadas; e aqui e ali, como cestos de verdura, ilhas lançadas na
corrente, com as suas margens atapetadas de vinhedos descendo até à margem, e
que as ondas vinham beijar com a lentidão harmoniosa da água correndo.
Ah! Era ali, naquele prado,
entre a floresta e a corrente, que Mathurin queria dormir. Levaram-no até lá e
cavaram-lhe o leito, sob a erva, não longe da latada que amarelecia ao sol e da
água que murmurava sobre a areia pedregosa da margem.
Uns pescadores partiam com as
suas redes e, curvados sobre os remos, impeliam o barco que deslizava
velozmente; cantavam, e a sua voz ia, levada pelas águas, e o eco chegava às
colinas vizinhas. Também eles, quando tudo ficou pronto, se puseram a cantar um
hino de sons harmoniosos e lentos, um hino ao vinho, à Natureza, à felicidade e
à morte, que partiu como o canto dos pescadores, como a corrente do rio, e foi
perder-se no horizonte. O vento levava as suas palavras, as folhas vinham cair
sobre o cadáver de Mathurin ou sobre os cabelos dos seus amigos. A cova não
ficou funda, e a erva recobriu-a, sem pedra cinzelada, sem mármore dourado;
umas tábuas de uma pipa partida, que por acaso se encontravam por ali, foram
colocadas sobre o seu corpo para que os passos não o pisassem.
Depois, cada um deles tirou duas
garrafas, beberam duas e partiram as outras duas. O vinho caiu aos borbotões
sobre a terra, a terra bebeu-o e foi levar a Mathurin a recordação dos últimos prazeres
da sua existência e aquecer a sua cabeça deitada sob a terra.
Só se viram os restos das duas
garrafas, ruínas como as outras; recordavam alegrias e mostravam um vazio.
Sexta-feira, 30 de Agosto de 1839
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