Livros de colorir, por Bernardo Carvalho


Uma amiga me envia um e-mail no meio da noite. Está indignada: “Não é possível que você não tenha nada a dizer sobre os livros de colorir!”.  Ela vem me infernizando faz semanas, desde que descobriu que os livros de colorir entraram para as listas de best-sellers. Mas agora, segundo ela, são seis entre os dez livros mais vendidos. Minha amiga vai explodir, mas eu continuo sem ver qual é o problema e sem conseguir compartilhar sua indignação, por maior que seja minha simpatia por ela e por maior que seja minha aversão aos livros de colorir.
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Ao contrário do que pensa minha amiga, os livros de colorir não são tão diferentes de outros títulos que costumam frequentar as listas de best-sellers. Eles são apenas uma radicalização dos livros relaxantes, destinados a entreter e distrair o leitor do estresse e do caos da vida diária. No balanço de vendas anunciado com orgulho no final das feiras e bienais do livro figuram sempre as revistinhas, os livros de autoajuda e os de proselitismo religioso.
Há uma diferença entre livros e literatura. Mas há sobretudo uma diferença entre quem fala de livros e quem fala de literatura. No ano passado, fiquei abismado ao assistir ao vídeo do encontro entre Juergen Boos, diretor da Feira de Frankfurt, e Paulo Coelho, no Frankfurt Business Center. Paulo Coelho exaltava a Amazon e o futuro do livro na internet, contra as editoras tradicionais, o que é coerente para um autor que vive na lista dos best-sellers. Paulo Coelho não precisa das editoras; elas é que precisam dele. Ele não estava dizendo nada errado além de se promover com aquele jeito que a muitos parece detestável. Mas Boos não conseguia conter o deslumbramento de estar ao lado de um autor com 160 milhões de exemplares vendidos no mundo. Podia ser quem quer que fosse, contanto que tivesse vendido 160 milhões de exemplares. Boos parecia uma criança no colo de Papai Noel. Aquilo me enojou. Um amigo belga com quem comentei a minha indignação me perguntou espantado: “Mas você queria o quê? Ele é o diretor da Feira de Frankfurt!”
Quem está interessado na venda de livros não precisa estar interessado em literatura e, como agora provam heroicamente os livros de colorir, nem mesmo em palavras. No fundo, os livros de colorir prestam um grande serviço de esclarecimento a quem ainda não tinha compreendido o funcionamento do mercado de livros. O interesse de quem quer vender livros por literatura é colateral, secundário.
Uma coisa interessante nisso tudo é o lugar do editor. Pra que serve um editor? Quando Paulo Coelho faz o elogio da Amazon, em Frankfurt, contra as editoras, sob os olhares embevecidos do diretor da Feira, ele fala em nome do oportunista que segue a favor do vento, para onde quer que o vento sopre. Divide os livros entre “conhecimento” e “entretenimento” e, idealmente, concebe uma combinação entre os dois, mas sem levar em conta a possível contradição aí embutida: que conhecimento supõe o desconhecido e que, embora haja prazer no conhecimento, ninguém se atira ao desconhecido por prazer. É claro que literatura é entretenimento, mas o desconhecido supõe coisas que talvez você não queira ouvir e que talvez (muito provavelmente) contrariem suas ideias e suas certezas. Não é fácil nem engraçado sair da sua zona de conforto. É duro conceber que a Terra gire em torno do sol depois de uma vida acreditando que era o sol que girava em torno da Terra.
Além de entretenimento e conhecimento, Paulo Coelho esqueceu de se referir à resistência de uma literatura que vai contra a corrente, porque está interessada justamente no desconhecido. Tanto os livros de Paulo Coelho como os de colorir estão interessados em manter o leitor na sua zona de conforto. São livros relaxantes. Os de Paulo Coelho, fazendo o leitor acreditar que está descobrindo, como pérolas de sabedoria, aquilo que no fundo ele sempre pensou. São livros que, no lugar do conhecimento (que pressupõe o risco de se perder, o risco de resistir ao senso comum para se aventurar no incerto), confirmam o lugar-comum. Se ele pode fazer o elogio da gratuidade na internet e da Amazon, contra a obsolescência das editoras, é porque reproduz o mesmo, o que todo mundo vai ler de qualquer jeito, pagando ou não, pelo conforto e pela tranquilidade de chancelar a sua compreensão prévia do mundo.
Paulo Coelho está no seu papel. Não há nada errado com ele, assim como não há nada errado com livros de colorir. Mas eles confrontam os editores com o seu papel. E já não era sem tempo. Se, como diz Paulo Coelho, os livros servem também para o conhecimento (e se o conhecimento supõe esse esforço de ir contra a corrente, muitas vezes contra o que se quer ouvir ou ler, rumo a um alargamento da compreensão do mundo, no qual a meu ver se insere a literatura) então – e a imagem do embevecimento do diretor da Feira de Frankfurt diante das vendas de Paulo Coelho é um símbolo constrangedor – talvez já não haja mesmo necessidade de editores no mundo. Desses editores, pelo menos.
27/05/2015 (originalmente publicado no Blog do Instituto Moreira Salles)
Bernardo Carvalho

Comments

  1. Muito bom!
    Pelo que ouço ser editor nunca foi fácil. Mas é claro que há umas pessoas que nascem fadadas para serem o que quer que seja que desejem: podem ser banqueiros e até banqueiros anarquistas; podem ser galeristas de arte e até artistas; ou podem ser viajantes e dedicarem-se ao gÓlf em "greens" improváveis e sobretudo remotos. Ah! E já me esquecia; podem ser editores.

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