A navalha de Palaçoulo, de A. M. Pires Cabral
Deixamos aqui um excerto - para abrir o apetite - da nova edição dos Livros Cotovia: "A navalha de Palaçoulo", de A. M. Pires Cabral (Contos).
«Pedi uma bica e dispus-me a observar discretamente o Poeta.
O Poeta, de quando em quando, parava de escrever e relia o poema e não parecia particularmente satisfeito com ele. Às vezes levantava os olhos do papel e olhava na direcção do tecto, absorto, indiferente ao bulício do café em hora de ponta. Devia acreditar que alguma coisa interessante esvoaçava no ar, à semelhança das moscas, e, à semelhança dos camaleões, esperava fisgá-la com um golpe certeiro de língua - perdão, de génio. E na verdade fisgava, porque subitamente pegava resoluto na esferográfica - ah, e como eu teria desejado do fundo da alma, santo Deus, que se estivesse servindo de uma velha e gorda Pelikan de tinta permanente, em vez de uma Bic baratucha! -, riscava uma palavra ou mesmo um verso inteiro e substuía-os por algo melhor que acabara de fisgar. Por vezes tamborilava no tampo da mesa algum metro mais renitente.
Visto do sítio privilegiado onde eu me encontrava, o poema parecia agora um emaranhado de riscos e rabiscos, que só o seu autor entenderia, por certo. E, com efeito, passada quase uma hora, o Poeta pareceu dar-se por satisfeito. Imaginei então que, aprisionada naquela martirizada folha de papel e naquelas estrofes trabalhosas, estivesse agora alguma Inês - uma bela, cantável e provavelmente ingrata Inês. Ou Mécia.
O papel estava visivelmente mais pesado. Era o peso da imortalidade.»
O Poeta, de quando em quando, parava de escrever e relia o poema e não parecia particularmente satisfeito com ele. Às vezes levantava os olhos do papel e olhava na direcção do tecto, absorto, indiferente ao bulício do café em hora de ponta. Devia acreditar que alguma coisa interessante esvoaçava no ar, à semelhança das moscas, e, à semelhança dos camaleões, esperava fisgá-la com um golpe certeiro de língua - perdão, de génio. E na verdade fisgava, porque subitamente pegava resoluto na esferográfica - ah, e como eu teria desejado do fundo da alma, santo Deus, que se estivesse servindo de uma velha e gorda Pelikan de tinta permanente, em vez de uma Bic baratucha! -, riscava uma palavra ou mesmo um verso inteiro e substuía-os por algo melhor que acabara de fisgar. Por vezes tamborilava no tampo da mesa algum metro mais renitente.
Visto do sítio privilegiado onde eu me encontrava, o poema parecia agora um emaranhado de riscos e rabiscos, que só o seu autor entenderia, por certo. E, com efeito, passada quase uma hora, o Poeta pareceu dar-se por satisfeito. Imaginei então que, aprisionada naquela martirizada folha de papel e naquelas estrofes trabalhosas, estivesse agora alguma Inês - uma bela, cantável e provavelmente ingrata Inês. Ou Mécia.
O papel estava visivelmente mais pesado. Era o peso da imortalidade.»
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