Biblioclasmo – Por uma prática crítica da lecto-escrita, de Fernando R. de la Flor
Sobre o autor:
Fernando R. de la Flor (n. 1951), Doutor em Ciências da Informação pela Universidade Complutense de Madrid e Professor Catedrático de Literatura Espanhola na Universidade de Salamanca, é um dos mais importantes pensadores espanhóis da actualidade dedicados ao estudo do Barroco e autor de uma vasta obra ensaística. Biblioclasmo – Por uma prática crítica da lecto-escrita foi pela primeira vez publicado em Espanha no ano de 1997, sendo em 2004 editado pelos Livros Cotovia, com a tradução de Pedro Serra, Professor Titular na Universidade de Salamanca, Departamento de Filologia Moderna.
Fernando R. de la Flor recebeu por este livro o prémio “Fray Luis de Léon” de ensaio.
«Que faremos com isto? Não há que pensar! Copiemos!», assim se lê Flaubert anunciar a decadência do Livro, em Bouvard e Pécuchet (título editado pela Cotovia), expressão que se vai, forçosamente, reunir ao espírito da de Nietzsche: «Não ler livros», ambas usadas em epígrafe, a encabeçar dois capítulos de Biblioclasmo. Fernando R. de la Flor, no capítulo que abre com esta última epígrafe de Nietzsche, toma assim como tema o “efeito Bouvard”, expondo claramente a resposta que poderia ser dada à pergunta invisível “quem são os leitores modernos?” Na ponta da língua, diz-nos: «(...) no livro de Flaubert o novo herói, o homem contemporâneo, sumido na alienação, já não dispõe de força suficiente para romper o muro das palavras em que se encontra como que enclausurado. Não será possível que a biblioteca seja de novo entaipada por uma mão piedosa, como sucede em El Quijote. (...) O homem moderno neles representado já não somatiza bem a leitura, o que podemos supor ser possível nos primeiros tempos, em que a leitura gozava de prestígio e fulgor. A letra já não vive, não estimula na vida as fantasias lidas. O homem moderno consome letra morta porque, como dizia o evangelista, “a letra mata”. Atado ao cepo de um qualquer lecto-escriba, o homem moderno sonha apenas ler infinitamente, sem meta nem teleologia alguma que confira um sentido pessoal ao seu gesto mecânico.»
E porque este é um livro que faz anunciar o seu
teor num prólogo subjectivo, partindo do relato de uma experiência visual,
fiquemos com o olhar destas palavras focado no quadro de Arcimboldo: O Bibliotecário.
«Persegue-me uma figura anamórfica desde que, pela
primeira vez, a vi surgir diante de mim na profundidade silenciosa de um museu.
A partir desse momento, que não posso datar com precisão, a imagem que entrevi
visita-me com frequência, aparecendo sobretudo durante a noite, para
desestabilizar com a sua simples presença aquilo que foi a lenta e fatigante
construção da vigília.
Se bem recordo aquele primeiro dia em que deparei
com o seu enigma lúgubre, direi que, de repente, me encontrei na presença de
uma câmara vazia submergida numa escuridão ocre, que identifiquei
imediatamente, por um defeito de deslocação e contaminação a que se presta
frequentemente a pintura de género, com os fundos dos óleos tenebristas do ancien régime: natureza morta.
Nesta cena de representação, aquilo que
imediatamente vi foi um objecto conhecido e amado desde sempre. Com efeito,
livros – deles se trata – luxuosamente encadernados pareciam estar dispostos
numa vulgar pilha ou montão, com a qual o pintor queria representar a sensação
imperiosa de terem sido recentemente consultados e abandonados ao acaso, o que
não é mais do que uma das muitas marcas que acompanham a produção intelectual –
o “serviço dos livros”. O quarto escurecido de um poeta, o cenário fúnebre do studiolo vagamente antigo, era ali
descrito por uma espécie de eloquência, rotundidade e força de que o livro
sempre disfruta no lugar onde se encontra, fetiche explícito de um mundo que,
com a sua simples presença, o livro encarna e define.
Seja como for, não tenho dúvidas: o lugar era um
espaço de sofrimento. Sendo uma biblioteca – era-o, seguramente –, os livros
centralizavam o domínio obscuro de uma actividade que apenas parecia tê-los a
eles por objecto: nem outras luzes (a não ser uma espécie de iluminação
zenital), nem rasto de nenhum quadro, nem suportes, nem chão, parecendo aquele
território um sarcófago (mais tarde conheci outra palavra para descrever o
espaço de emergência fúnebre do livro: bibliotáfio),
onde estava sepultado o próprio corpo
livresco. (...)
Os livros abandonados ou algo gastos já não são
livros. O seu contorno perfila, lentamente, o que começo a intuir ser um lugar
humano: é um homem que surge, apenas como silhueta, no início da experiência.
Uma insinuação, algo que é apenas uma sombra, apodera-se com autoridade do
domínio visual compartido, realizando essa transferência, essa possibilidade
de acomodação que tudo encontra na figura humana, fonte de todas as analogias.»
* Biblioclasmo, com as suas 348 páginas,
encontra-se com o preço promocional de 5€. Pode visitar-nos na nossa livraria, situada na Rua Nova da Trindade, nº 24, das 10h às 19h. Estaremos abertos no sábado, dia 20, para as oportunidades de Natal como esta.
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