Pode um desejo imenso, de Frederico Lourenço
Tendo
sido o seu primeiro romance, Pode um
desejo imenso (Prémio PEN Clube 2002), de Frederico Lourenço, resultou numa
trilogia a que se juntaram os títulos O
curso das estrelas, no mesmo ano, e À
beira do mundo (2003). Em 2006, a intenção do autor foi reunir tudo num
único volume, mantendo o verso camoniano como a força aglutinadora do sentido
geral desta obra faseada: Pode um desejo imenso. Nesse ano, o
autor recebeu, por unanimidade do júri presidido por Eduardo Lourenço, o Prémio
Europa / David Mourão-Ferreira, numa iniciativa conjunta da Universidade de
Bari, do Instituto Camões e da Fundação Gulbenkian. Este
prémio consiste na tradução para italiano e para outras três línguas europeias
da mais actual edição de Pode um desejo imenso e
comprova, assim, o reconhecimento internacional de Frederico Lourenço.
“A progressão narrativa
torna-se indissociável da progressão ensaística e, entre uma e outra,
constroem-se articulações de recíproca iluminação do próprio sentido da ficção
que nos é proposta.
Nuno Galvão, um jovem professor
universitário, especialista de literatura e filosofia clássicas e da obra de
Camões, sente-se muito atraído por um aluno, Filipe, namorado de Patrícia,
também sua aluna, e desenvolve uma espécie de processo de sedução mais ou menos
contida em relação a ele. (…)
A narração é feita num registo muito sóbrio, que não exclui um diálogo
de mordaz ironia entre Nuno e o pai, nem uma página de bela intensidade sobre
Lisboa, nem várias alusões musicais de grande refinamento, nem uma série de
incursões de alta erudição, nomeadamente no tocante à tópica clássica, grega e
latina.”
Vasco Graça Moura, Os
Meus Livros
Fala-nos Vasco Graça Moura de um
“diálogo de mordaz ironia entre Nuno e o pai”, ei-lo:
«– Salsa picadinha?
– Isso mesmo. Mas conte lá, Nuno, ainda não me
disse nada sobre o seu colóquio. Vai apresentar alguma comunicação?
– Vou.
Amanhã de manhã, logo às nove. Era para ter sido hoje, mas o nosso amigo Mendes
teve um ataque de obscurantismo...
– Em que
aspecto? Bom, não me admira nada: dá-me ideia que os processos mentais dele são
impenetráveis até para ele próprio. Mas isso é que é o besugo? Não me diga que
vai comer isso?
Nuno não fez caso desta última observação. – O
obscurantismo foi mais denotativo: ele pura e simplesmente não gostou do título
da minha comunicação porque vinha lá a palavra “homoerótico”.
António levantou os olhos da espetada e fitou o
filho. Da sua expressão não era possível depreender a que é que ele estava a
reagir.
– Homoerótico ? Isso é o quê?
– É grego, Pai. Hómois,
semelhante; eros, amor: utiliza-se
para designar sentimentos eróticos entre pessoas do mesmo sexo.
– Sentimentos eróticos? – perguntou António. – Isso
não é um pleonasmo?
– Não necessariamente. Aliás, não me parece que a
palavra “sentimento” seja susceptível de integrar uma expressão pleonástica. Pleonasmo
implica redundância, não é? Acho que no amor nunca há o perigo de redundância;
ou melhor: pode-se ser redundante à vontade no sentido em que chover no molhado
é já de si uma componente própria do estado de estarmos apaixonados; é
monocórdico amar-se alguém, deliciosamente monocórdico... tomáramos que a
pessoa amada fosse duas vezes ela própria!
– Desculpe?
– Estou a pensar no soneto em que Camões se compara
a Télefo, o Amfortas grego, que só podia curar a ferida com a mesma arma que a
tinha infligido. Não será isso mesmo que ele quer dizer? O amor enquanto
pleonasmo: ferido de ver-vos, claramente
/ Com vos tornar a ver Amor me cura.
– Isso que você está a tentar formular é um axioma
ou um teorema?
– Tem de ser obrigatoriamente uma coisa ou outra?
– Não sei se obrigatoriamente
– disse António. – Agora, o que eu acho é que os dados deveriam ser mais
incontroversamente objectiváveis, o que não é (de longe!) o caso naquilo que
está a tentar dizer. Tanto mais que lá o seu “homoerotismo” me parece prima facie um caso óbvio que prova a
existência de uma forma de amar intrinsecamente pleonástica. Agora, quando você
afirma que o facto de uma coisa ser por natureza pleonástica isenta ipso facto essa mesma coisa de incorrer
em pleonasmo, isso parece-me um absurdo absoluto. Por isso é que perguntei se era
um axioma.
– Não, Pai, não é um axioma. É só um pequeno occupational hazard de quem lê muito
Camões.»
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