Marquês de Sade: 200 anos da morte
"Sade, esse sublime energúmeno"
ANTÓNIO GUERREIRO
Duzentos anos após a sua morte, Sade continua a visitar-nos como um
fantasma que não se extingue, desafiando o nosso tempo com os seus textos, tão
difíceis de olhar de frente, em que se faz a apologia do prazer e do vício
contra a lei e a ordem.
Sade, o “divino marquês”, como é às vezes chamado com irónica ternura e
artificioso respeito, morreu há 200 anos, a 2 de Dezembro de 1814.
Duzentos anos é tempo
mais do que suficiente para conhecer esta criatura que nunca foi de Deus, mas
da blasfémia, para classificar e anestesiar esta “planta venenosa que a
Natureza fez nascer” (como se define uma das suas mais cruéis personagens).
Mas, dois séculos depois, ainda não se dissipou o “mistério Sade”, esse
monumento de obscuridade que perdura sem descanso e suscita a pergunta tantas
vezes repetida: quem é ele? Vale a pena transcrever a resposta de Blanchot:
“Sade é uma excepção monstruosa, completamente fora da humanidade. A sua
singularidade é a de ter cometido um delito tão monstruoso que não é possível
caracterizá-lo sem perigo."
O celerado Donatien
Alphonse François de Sade, nascido em Paris, em 1740, deixou uma obra excessiva
e escandalosa como nunca houve outra, à medida da sua própria vida cheia de
escândalos, de loucura, de excesso, de imoralidade ostensiva, em conformidade
com uma racionalidade libertina e libertária que execrava a lei e a ordem da
Família, do Estado, da Sociedade (ver caixa). Os textos de Sade continuam a
ferir profundamente os sentimentos e os pensamentos humanos, são ainda hoje
insuportáveis de ler. Até o mais exaltado ateísmo moderno empalidece e recua
horrorizado quando depara com estas palavras do Diálogo Entre um Padre
e um Moribundo: “Devo dizer que o horror que me provocas é simultaneamente
tão justo, e tão grande, e tão forte, que me masturbaria com prazer e com
tranquilidade, ó Deus vil, sobre a tua divindade, ou foder-te-ia se a tua
frágil existência pudesse oferecer um cu à minha incontinência."
A efeméride não podia
deixar de ser assinalada em França. Afinal, Sade até já saiu há alguns anos do
“infernos das bibliotecas” e a sua obra completa foi editada na colecção da
Pléiade, ao lados dos clássicos. Entre as manifestações que comemoram os dois
séculos da sua morte, a mais imponente é uma exposição de pintura, gravura e
algumas esculturas que pode ser vista no Museu d'Orsay. Chama-se Sade – Attaquer le Soleil e
foi comissariada por Annie le Brun, poeta, ensaísta, autora de alguns estudos
sobre o “escritor”. Pomos a palavra entre aspas para sugerir que talvez não
seja a mais adequada para o classificar, se entendermos que ela o coloca
indevidamente do lado dos fins literários e o encerra na literatura. O título
– Attaquer le Soleil – faz alusão a uma célebre máxima de
La Rochefoucauld: “Nem o sol nem a morte podem ser olhados de frente." O
que não pode ser olhado de frente é irrepresentável. Ora, a ideia subjacente à
exposição é a de que Sade se confronta com o irrepresentável do desejo e das
pulsões mais violentas e cruéis, dando a ver pela primeira vez o que nunca
tinha sido visto e dando a ver de outra maneira o que já tinha sido visto.
Muita pintura do século XIX (que constitui a parte mais substancial da
exposição, embora o século XVIII e o século XX também estejam representados)
surge assim à luz de um foco sadiano. A tese de Annie le Brun é de que o século
XIX, apesar de ter encerrado Sade nas bibliotecas, foi fascinado por ele.
Trata-se, no fundo, de ver como é que Sade, colocando essa questão do
irrepresentável, vai ao encontro de uma das preocupações maiores da história da
pintura. É como se, depois de Sade, o sadismo – essa palavra que, para
muitos, só tem um sentido médico-psiquiátrico – se tivesse tornado
simultaneamente um horizonte inultrapassável e uma ideia latente.
O abismo negro
Fosse a exposição
limitada ao século XX, e as coisas parecer-nos-iam muito mais óbvias, já que
foi então que Sade saiu da clandestinidade. Apollinaire, reunindo em 1909
algumas Páginas Escolhidas, foi o primeiro a levar o autor de
La philosophie dans le boudoir a sério. E fê-lo com uma
declaração profética: “Este homem que talvez não tenha contado para nada
durante todo o século XIX pode muito bem dominar o século XX." Depois
vieram os surrealistas, que fizeram dele uma figura tutelar, e vieram
Klossowski, e Bataille (para o qual Sade foi motivo de um conflito com Breton)
e Blanchot, Lacan, Foucault e muitos outros. Não se pense, no entanto, que esta
recepção de grande envergadura teve algum efeito nas entidades oficiais que
zelam pelos bons costumes. Em 1957, o editor Jean-Jacques Pauvert (recentemente
falecido) foi julgado em Paris na sequência de uma queixa apresentada pela
Comissão do Livro, por ter publicado La philosophie dans le boudoir, La
nouvelle Justine, Juliette e Les cent vingt
journées de Sodome. Foi o chamadoAffaire Sade. Entre as testemunhas
de defesa de Pauvert estavam Georges Battaille e Roger Caillois. Este último
respondeu assim ao juiz que lhe tinha perguntado se não achava que tais livros
eram perigosos para os costumes: “São muito perigosos. Conheci uma rapariga que
entrou para o convento depois de ter lido as obras de Sade." Pauvert foi
condenado a pagar 80 mil francos de multa e os livro foram confiscados e
destruídos.
A fortuna de Sade no
século XX significou também divergências interpretativas. A tendência para
vê-lo como um libertino teve os seus adeptos. De certo modo, os surrealistas
viram-no desse modo. Mas Sade não se pode confundir com um daqueles libertinos
de corte, munidos de uma retórica elegante e procurando os prazeres da sedução
e a intelectualização do desejo. Estes libertinos inventaram uma ideia de
liberdade que não convidava à acção, mas ao jogo da razão. O furor sadiano e as
suas incursões radicais na território do mal e das transgressões mais extremas
está para além da libertinagem e abre um abismo negro: Sade mostra um lado
impensado e inaudito da razão e da liberdade do Iluminismo. Bataille contra
Breton encontra aqui o seu princípio de explicação. As ideias do mal e da
transgressão, tal como Bataille as vê a as desenvolve a propósito de Sade, não
são compatíveis com a anulação que Breton faz da dimensão política da
escatologia sadiana. A sua preocupação era a de fazer entrar o divino marquês
na bolsa dos valores literários, mesmo que à custa de sublimação poética e
ascensão idealizante. Bataille, pelo contrário, procede à operação contrária,
de dessublimação, algo que não admite a “admiração”. Por isso, ele coloca na
boca de uma personagem de Le bleu du ciel estas palavras:
“Aqueles que admiram Sade são uns escroques."
Mas a grande clivagem
na história das leituras da obra de Sade é aquela que emerge do último filme de
Pasolini, Saló ou os Cento e Vinte Dias de Sodoma.Transpondo para a
Itália de Mussolini, e para a República fascista de Saló, a obra mais
insuportável de Sade, aquela que leva até limites nunca antes imaginados um
catálogo de perversões que decorrem de um princípio formulado em La
philosophie dans le boudoir – “Não há nenhum homem que não queira
ser déspota quando está teso” –, Pasolini constrói uma analogia entre Sade e o
fascismo. A lógica fascista do poder teria assim encontrado no castelo de
Silling (onde se passa todo o deboche de Os Cento e Vinte Dias de
Sodoma) a sua representação alegórica mais perfeita. Esta leitura
pasoliniana cruza-se com uma outra, feita por Adorno e Horkheimer num ensaio
incluído em A Dialéctica da Razão, de 1947. O que eles identificam
em Juliette et la raison morale é da mesma ordem que a
irrupção do terror na História que o nazismo tinha desencadeado, traçando assim
uma analogia entre os heróis de Sade e o poder totalitário do nazismo. Esta
leitura incide não sobre a utopia libertina e libertária de Sade (que, na sua
versão mais comprometida com o momento político revolucionário, se exprime no
panfleto Français, encore un effort), não sobre a desmesura
libidinal das orgias, mas sobre os gestos dos carrascos que distribuem
metodicamente os suplícios pelas suas vítimas. Neste sentido muito adorniano,
Sade é visto como uma peça que faz a ligação entre Kant e Auschwitz. E assim
temos um Sade fascista e um Sade nazi
Um perpétuo deboche
Les cent vingt
journées de Sodome é o momento mais extremo da obra sadiana. É um livro inacabado, que o
seu autor começou a escrever em 1785 num longo rolo de papel, quando
estava encarcerado na Bastilha. Escondia o rolo num dos godemichés que
a mulher – submissa – tinha feito e levado para ele. Não foi a única vez, nos
quase 30 anos que passou na cadeia, que solicitou à mulher instrumentos para se
sodomizar (e alguns foram por vezes causadores de lacerações), ele que disse de
si próprio que era um cavalo demasiado fogoso para estar preso. É preciso
lembrar que Sade sempre valorizou a sodomia, que considerava um “vício
filosófico”. E valorizava-a porque a entendia como uma negação das leis
naturais relativas à reprodução e, portanto, à Família e ao Estado. Por isso
faz sempre intervir esta prática tanto na educação dos rapazes como na das
raparigas. Ser sodomizado não é para ele sinal de nenhuma inferioridade, mas
pelo contrário o primeiro degrau para se chegar à soberania. Num dos episódios
escandalosos que o levaram à prisão, deixa-se sodomizar pelo seu criado diante
de um grupo de prostitutas a quem tinha ministrado previamente uns produtos
químicos.
Alguns dias antes do
14 de Julho, Sade foi transferido para o hospício de Charenton porque se tinha
tornado um elemento altamente perturbador e fora apanhado a fazer incitamentos
à insurreição. Nessa transferência, o manuscrito de Les cent vingt
journées de Sodome ficou perdido. Mas não para sempre, como pensou
Sade, que muito sofre com essa perda e nunca irá ter a alegria de saber que o
desaparecimento do manuscrito não foi definitivo. Acabaria por ser recuperado
nos escombros da prisão, e por ser várias vezes vendido e comprado; apenas em
1904 seria finalmente publicado. Uma edição mais completa e fiável em três
volumes só aconteceu em 1931-1935, graças a Maurice Heine. Essa “obra
excepcional”, um “esforço exemplar para a mais feroz análise do ser”, como escreveu
o próprio Sade, tem um valor fundador na história do pensamento de Sade. Ao
longo dos 120 dias desenrolam-se as cenas, um verdadeiro catálogo de perversões
e manias, umas centenas de “paixões" que vão das mais simples às mais
complexas. Há aqui uma intensificação progressiva do deboche e das sevícias
praticadas sobre as vítimas pelos carrascos, que só conhecem uma determinação:
a do prazer próprio.
Sade foi, também ele,
uma vítima do Terror e só não teve a cabeça cortada graças ao Termidor. O seu compromisso
não foi com a Revolução, mas com a insurreição. Ele reclamava a necessidade de
uma insurreição permanente, uma contínua imoralidade como fermento da desordem.
A insurreição deveria ser o estado permanente de uma república. Destruir
os castelos não bastava. Também não bastava destruir a Lei. Era preciso
um débordementcontínuo. Só a instauração do perpétuo deboche estava
à altura do programa de Sade porque, na sua concepção, o prazer não nasce de
outra fonte senão do jogo violento com as regras sociais.
in Público
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