Como se o Mundo Não Tivesse Leste, de Ruy Duarte de Carvalho
Sobre o autor:
Ruy Duarte de Carvalho (1941-2010),
embora nascido português, de Santarém, naturalizou-se angolano em 1975.
«Regente agrícola de formação, trabalhou na cultura do café no norte e centro
de Angola e na criação de ovelhas caraculo do sul.» Realizou filmes, também, e doutorou-se
em antropologia social e etnologia. Homem da mão e do pensamento, do olhar e da
escrita.
1
Quando o Chefe chegou já João Carlos tinha metido
dois copos. Resistiu até poder mas a espera fora longa, e tinha que aguardar
forçosamente ali, entre a casa da estação e os dois comércios, por varandas e
portais, vendo quem entra e vendo quem sai,
boa tarde irmão
se quer me
acompanha,
não muito
obrigado,
agora ainda não.
Mas o corpo
existe e a carne é fraca e a força de dez convites é forte já para demover
vontades que o querer impõe e a tentação corrói.
Chegara ali pela
uma da tarde. Perdida a batalha, tinha o dia inteiro à sua frente antes de
decidir meter-se a caminho, de regresso à fazenda, consumidos assim o dia de
folga e a esperança de recuperar o par de bois que em dois anos de trabalho
conseguira adquirir. Nem dinheiro nem bois, agora, confusões que a sorte tece,
nada a fazer, começar de novo, quem faz dois faz quatro, quatro anos mais a
trabalhar ali, pastor de ovelhas, quando voltasse à terra levaria os quatro
bois, nada havia que disso o demovesse, um homem tem que saber é se pode contar
consigo mesmo. E era uma sorte, ter encalhado ali naquela terra, com bois para
comprar e uma linha de caminho de ferro para os deixar quase mesmo já na sua
libata. Oferta para os filhos, legado de um pai que se consumira em trabalho
avulso, às ordens dos brancos, campeão de angarias, zé-ninguém sempre em
viagem.
João Carlos de
seu nome,
natural de
Chinguar,
pastor de ovelhas
agora,
outras coisas
noutros tempos:
escalador de
peixe grosso
nas salgas de
Equimina,
cortador de cana
verde
nas baixas da
Tentativa,
viveirista de
café
nas roças da
Boa-Entrada,
cozinheiro de
alemão
em fazendas de
Calulo,
ajudante de
tractor
em plantações de
sisal.
E as outras
coisas cumpridas
na vida
particular:
agricultor de
quintais
nos planaltos de
Bié,
casado por mão de
padre
na igreja da
missão,
pai de dois
filhos criados
à custa de
privação,
e de mais três
falecidos
com enterro de
cristão.
De porte fraca
figura,
meão de altura e
de peso.
Idade cinquenta
anos
vencidos a
trabalhar
mais para os
outros que para si.
Devedor de
algumas contas,
credor de muito
martírio,
João Carlos
natural
do Chinguar, no
Bié,
pequenino mas
teimoso
e firme nas
decisões,
triste mas
disfarçador
da tristeza que
lhe habita,
cansado mas vivo
ainda
para decidir do
que quer,
daqui me hão-de
acompanhar
quatro bois novos
ainda
para ensinar a
lavrar
nas lavras que
hei-de fazer
quando enfim me
reformar.
Quatro bois no
fim da vida,
mais não posso
projectar,
para mais não me
deu o esforço
e a meus filhos
caberá
tirar dos bois
recompensa
na força que lhe
couber
da força que lhes
neguei
dando-a aos
outros nos contratos
que a vida me
armadilhou.
“- O senhor está a ver, boi aqui é muito e o seu valor é carne, no
Chinguar trabalho. Aqui posso comprar até quatro cabeças, valem menos as quatro
que uma só no Bié. Há depois o comboio, facilidades, tanto pagam quatro como
paga um. Quando for embora levo-lhes comigo. Me acompanham lá. Demora quatro
anos, comprar bois e passagem. É tempo, sim. Mas conta o tempo quem passou a
vida é mais longe dos seus? Entre um contrato e outro o tempo só para fazer um
filho, pagar contas antigas e firmar mais dívidas. Às vezes, até, nem tempo
dava para fazer mais filho. Quando acordava da primeira festa, à porta ainda do
comerciante, a caderneta estava é já na mão do branco e eu em número um para
partir de novo, sei lá para onde, para o norte ou para o sul, sisal ou café,
cana ou pescaria.”
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